António Pimentel na Casa Municipal da Cultura

Publicado no Diário de Coimbra de 1 de Agosto de 1997

Na Casa Municipal da Cultura (aquela casa onde se encon­tra muita gente, se vive muita cultura e é de todos nós) esteve durante o mês de Julho uma exposição do conhecido pintor António Pimentel.

Sendo este o assunto de hoje, não desejaria esquecer que no mesmo período também ali esteve patente uma exposição de arte fotográfica de bastante interesse (“Viagens na minha Terra”, de Paulo Abrantes) que aqui não comento por ser curto todo o espaço de que disponho para abordar aquele outro tema, circunstancial­mente mais adequado a uma “conver­sa de pintor”.

A abrir aquilo que diz respeito à exposição de A.P. aqui se regista, antes de mais, todo o trabalho que foi feito na Casa, no que respeita ao aproveitamento e valorização das áreas disponíveis, na conquista dum “clima” que corresponde ao melhor que ali tem sido feito, em ordem ao que se mostra, à forma como se mostra, cores e materiais envolventes, luz, etc.

Observe-se e leia-se com muita atenção o volumoso catálogo produzi­do e editado sob a chancela da Câmara Municipal, obra que faz entrar este tipo de realizações em Coimbra numa fase qualitativamente distinta, quer no que respeita à forma, quer ao conteúdo.

Apetece fazer votos de que estes factos não sejam uma opção mais ou menos casual ou subjectiva, antes constituam um consolidado salto qualitativo, para exemplo de outros acontecimentos e de outras institu­ições promotoras de arte e cultura.

Carne da mesma carne

Aquilo que mais surpreendia o visi­tante ao entrar nas duas salas onde havia trabalhos expostos, não era a óbvia circunstância de se encontrarem metodicamente arrumados quanto às suas dimensões. Aqui as obras “maiores”, mais relevantes e mais nobres, ali as outras, igualmente relevantes e nobres, mas de qualquer jeito e por fatalidade da sua própria matéria, “mais pequenas” que as anteriores. Ao contrário, julgo que todo o conjunto de trabalhos possuía uma coesão tão sólida, uma densidade tão uniformemente equivalente que, para mim, qualquer que fosse o ângulo da observação, elas me pareciam como uma só obra, quase magicamente con­cebidas no mesmo instante, corpo que é dado à luz repartido, mas carne, da mesma carne.

Para isso contribui a maturação da “ideia” e a administração conjunta de forças diversas, como são todos os elementos plásticos, desde o suporte, ao desenho, à cor. Quanto ao suporte devo dizer que me encanta uma pintu­ra feita assim, permitindo ao observador a capacidade de se aperceber da presença substancial desse elemento, o que aqui é conseguido graças à sub­tileza e parcimónia com que é admin­istrada a substância da cor, ou devido à forma elaborada que o artista utiliza para “abrir”, na tinta já anteriormente aplicada, valores de luminosidade e transparência, graças a uma apropria­da acção mecânica (ou “frottage” como dizem aqueles que estão a par do calão…).

Quanto ao desenho, impressiona-me a forma como António Pimentel, concebendo muito embora a substân­cia essencial da sua mensagem em torno da forma desenhada, consegue posteriormente, com a subtileza e economia de meios que já referi, fazer com que a aplicação das cotes vá reivindicar, ao espaço de signifi­cação pictórica, uma valiosa parcela do discurso total das obras apresen­tadas.

É fácil descobrir, como novidade significativa no arsenal de argumentos do pintor, o momento mágico em que a pintura – aqui e ali – consegue tornar-se independente e reclamar espaço próprio, tal como acontece na abertura de “tramas de luz” que vêm animar certas zonas neutras, con­ferindo-lhes uma significação útil, já distante, de certo modo, da origem temático-figurativa.

Noutros casos, a configuração de certos elementos mecânicos ou de construção, cuja “credibilidade” ou “verismo” tão frequentemente tem sido utilizado pelo artista como um dos seus principais argumentos, pare­cem progressivamente dominados pelo trabalho da cor, que cria transparências, descontinuidades ou

tanto mais importante se colocarmos a nós mesmos a questão que só o tempo esclarecerá, de procurar saber até onde se vai desenrolar o processo, e quais as surpresas que nos reserva no devir da obra do artista.

No contexto assim definido, ape­nas me pareceria dispensável o uso que o artista (ainda) efectua de processos fatalmente derivados da sua anterior experiência de artista gráfico, nomeadamente a inserção de letras. Esta utilização, feita por decalque, como demonstra a memória perfeita dos antigos conjun­tos do “letraset”, escamoteia por vezes a configuração volumétrica dos “organismos” respectivamente subjacentes, pouco acrescentando ao esplendor visual dos mesmos, roubando quiçá ao observador algum que outro espaço vazio, tão necessário e apetecível, numa pintura como esta em que todos os centímet­ros quadrados de tela contam para fascinar o observador.

Vestígios da decadência ou berço dum mundo novo?

À entrada da exposição, um monte de ferros, alusão à decadência de objectos outrora úteis e reluzentes, tão típicos da nossa sociedade que prefere o cimento aos espaços verdes e privi­legia o jipão arrogante em detrimento do homem a pé ou de bicicleta.. Também disso fala o trabalho de António Pimentel, e também esse tem sido, ao longo dos anos, parte signi­ficativa da sua mensagem. Contudo, o olhar que dirijo àquele escasso mon­tículo de “ferraille”, é inteiramente diverso daquele que reservo para as pinturas expostas, como duma antítese se tratasse, ou duma transfig­uração intencionada.

Dentro da sala, nem o fascínio da construção desenhada, nem a vibração envolvente da cor têm directamente a ver com o tema assumido, num movi­mento de metamorfose que constitui, ao que julgo, uma das mais activas alavancas do processo criador: a figu­ração, qualquer que seja o grau de verosimilhança, nunca é senão “uma outra coisa”, entidade autónoma e lib­erta da essência relativa e circunscrita do objecto figurado. Este funciona apenas como pretexto ou argamassa para construção dum outro mundo, senão inteiramente novo, diferente em tudo aquilo que lhe conferiu impulso inicial, catapulta serena das ideias e da afirmação dos signos, a voarem agora livres e sozinhos como os pássaros.

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