Category Archives: conversas de pintor

A importância do jornalismo cultural

Um acontecimento cultural ou artístico sem eco ou resposta inteligente é um não-acontecimento. Sempre tive o interesse e o gosto de olhar e considerar o trabalho dos outros. Primeiro para meu uso, seguidamente para dar testemunho de opinião e sensibilidade. Julgo que uma sociedade que não responde de forma critico-apreciativa às manifestações culturais e artísticas é uma sociedade pobre, no sentido mais cortante e inconveniente do termo. A inteligência crítica é uma energia produtora de evolução em todos os sentidos. A cultura que não estimula essa atitude, se não está morta, está entregue ao calculismo e à falta de generosidade.

Costa Brites

Armando Martinez – Conjunto escultórico megalítico Mealhada

Sete blocos de pedra com formas petroglíficas formam um círculo mágico com seu portal virado a nascente. Na face exterior, o lado terreno, definido por elementos esculpidos em alto relevo, são a ligação do homem à mãe Terra, iluminada pelo Sol.
Na face interior, o misticismo, representado por figuras de deuses em baixo relevo que caminham na Terra sob o obscuro mistério da Lua. O círculo mágico encerra dentro de si uma mesa… Mesa mágica de agradecimento pelas dádivas ao universo e à vida…

Mealhada 21 – 06 – 2010 (placa identificativa da C.M. da Mealhada)

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NOTA:Este projecto, de autoria de Armando Martinez, foi executado por ele próprio, com a colaboração de três escultores seus amigos: Fernando Martins, Santos Carvalho e Xico Lucena.

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Do druidismo e da cultura céltica, do coração antiquíssimo da idade da pedra, vem visitar-nos a sugestão de um espaço diferente de todos os outros, mescla inventada por um escultor habituado a calcorrear serras em busca de fósseis de todos os animais desaparecidos há milhões de anos, pedras ornamentais, blocos maciços de pedras duras ou duríssimas de todas as cores e consistências, picadas à mão com esforço doloroso ou cortadas à máquina, conforme a altura, a espessura e a tonelagem.
Espaço diferente de todos quer dizer: espaço igual apenas a si próprio, inventado pela sugestão de tempos apenas imaginariamente concebíveis, feitos por homens que apanhavam animais ferozes à mão, que se protegiam do frio com as peles curtidas desses animais e que acabavam por desenhá-los um dia na pedra, como desenhavam o sol ou a lua, a vulva materna fundamental, o guerreiro, o caçador, o gamo, os peixes e todas as coisas principais, com perfil de antemão concebido para enfrentar milénios.
Tais homens existiram e deixaram sinal de si como talvez muito poucos agora consigam fazê-lo, emaranhados no novelo da multidão confusa de tudo o que não pára na cabeça, porque não descansa no olhar tempo suficiente e não ganha direito ao silêncio merecido pela contemplação íntima.
É preciso talento sentimental de humanidade para sonhar vidas como essas, diferentes de tudo que podemos imaginar no precipitado quotidiano destes dias. É preciso uma enorme ternura de solidariedade, um poética energia da memória, e a vontade de viajar no tempo quem sabe, para nos lembrarmos lucidamente do que fomos nós mesmos nessa remota fúria original.

Armando Martinez - Conjunto escultórico megalítico Mealhada

Costa Brites e Armando Martinez


Os meus parabéns aos cidadãos da Mealhada

As minhas felicitações ao povo da Mealhada são a resultante da visão apreciativa que me mereceu uma obra do património monumental doravante entregue à utilização de todos que ali vivem.
O monumento está ali, desafia o olhar de quem observa e responsabiliza também o cidadão que passa. Se é notável na sua concepção, se está bem enquadrado na natureza organizada pela mão do homem, deve ser estimado e, mais do que isso, deve merecer um comentário. A indiferença dos cidadãos pelas obras públicas que favorecem a sociedade de forma objectiva, contribuem para a desmoralização de quem as imaginou, realizou e promoveu à condição de objectos reais.
Tendo buscado na internet (que é onde está tudo) não consegui saber a respeito dessa certa obra monumental nada mais do que o trivial das declarações de inauguração política, em fraca notícia mínima. Esta pobre documentação de uma peça monumental é aliada muito útil da indiferença dos cidadãos. Se a obra tem valor, se foi erigida com consciência e determinação, o esclarecimento deve estar presente de forma explícita e o recado da sua importância deve ser redigido antes − de modo que, passando por ela um grupo de crianças e de professoras, não a tomem como imprestável ou ausente.

A porta aberta para o nascer do Sol

A porta aberta para o nascer do Sol

Parabéns pois aos cidadãos da Mealhada porque dispõem, num sítio espaçoso e muito belo, de um lugar óptimo para fazer congressos, ou convénios, ou festivais, ou qualquer outra coisa destinada a amantes da visão retrospectiva da longuíssima aventura dos homens sobre a terra.
Fiz o meu juizo, tirei as fotografias, mostro-me com gosto ao lado do artista, cumpri o meu dever de cidadania da sensibilidade. Espero agora que todos os cidadãos da Mealhada cumpram a sua parte. Apreciando o que deve ser apreciado, vivendo a vida com gosto, tomando o Sol ou uns pingos de chuva que também faz falta, passeando com os amigos ou com a família, ou solitariamente se assim for desejável e propício à temperatura da alma, deixando o coração bater ao ritmo que puder com a serena consciência do prazer de estar e de ser.

Armando Martinez, escultor

Armando Martinez, escultor

Armando Martinez, a “pedra-mãe” e a alegria sem fim da viagem

O artista que escolhe a pedra como meio favorito de trabalho tem de ter, além da cultura e da sensibilidade respectivas, algo de mais enérgico, ou mais antigo, que o sólido saber necessário a todas as disciplinas da criação artística.
A escultura de Armando Martinez reflecte a experiência viva de contactos com a ampla diversidade do material lítico, e atestam o sentido de ofício que liga qualquer escultor de pedra à crepitação de antiguidade e aos metamorfismos da formação das rochas.
Ouvi-lo contar histórias de fósseis e blocos de pedra descobertos, mencionando o seu nome e a sua abundância, situa-nos algures entre o cenário imenso e mitológico das montanhas e o labor industrioso e poeirento das pedreiras donde saiu a matéria de que são feitas as catedrais.
Sem espaço para poder trazer-vos aqui um estudo sistemático de toda a sua obra, espalhada ao longo duma activa carreira internacional, iria referir principalmente o predomínio dum sensualismo sólido e fundamental, em sínteses regidas pela moderação e pela economia de meios.
A pedra esculpida permanece, apesar de esculpida, como forma simbolicamente compacta à flor da qual se desenvolvem configurações humanizadas, geralmente surpreendidas no gesto protector do abraço, no esforço titânico da maternidade ou no apelo fundamental da paixão.
É acentuada a modernidade sintética de formas opulentas, de cunho por vezes megalítico, apenas reduzidas no seu impacto por serem concebidas desta feita como trabalhos de reduzidas dimensões e mais fácil apresentação.
Noutro tipo de esculturas a forma alonga-se na perpendicular, atingindo o esquematismo totémico dum grito agudo de pedra, onde as mesmas sugestões de referência sensual e afectiva podem surgir, umas vezes de forma quase explícita, outras vezes mais francamente abstractizadas.
Em elevado número de obras é posta em evidência a variedade expressiva do material, que chega a incluir espécies rochosas muito raras, sendo habitual o contraste simultâneo de zonas lascadas e outras polidas.
Artista que viaja intensamente, mantém acesa a chama dum sentido de convivência que tem produzido frutos no estreitamento de laços entre Portugal e a Galiza.
Presente em largo número de obras públicas no seu país natal e em diversos outros, da Itália à Escócia, tem também um largo número de obras em jardins e praças portuguesas, numa clara demonstração da sua energia comunicativa, em tudo compaginável com o génio irrequieto do povo Galego, que connosco partilha a irrequietude insatisfeita de trota-mundos, fura-vidas descobridores e empreendedores de torna-viagem.

Costa Brites

Armando Martinez, escultor
Publicado Diário de Coimbra 3 de Dezembro de 2002,  por altura de uma exposição de Armando Martinez na Casa Municipal da Cultura em Coimbra

Carlos Lobo, um olhar aberto no meio da multidão

Publicado Diário de Coimbra 7 de Dezembro de 2001

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Esmalte de Carlos Lobo

Tenho à minha frente e manipulo alguns esmaltes coloridos da autoria de Carlos Lobo, nome que lanço à escrita sem os adjectivos brilhantes que os homens merecem apenas depois de mortos.

Carlos Lobo com seu rosto limpo e bem barbeado caminha pela rua com vários papéis debaixo do braço. Não vai depressa nem devagar, mas sentimos nos seus passos uma segurança e uma delicada determinação.
Irá visitar um amigo necessitado de apoio? Irá à abertura dum acontecimento artístico ou mandar uma carta urgente para um continente distante? Provável é que vá encontrar-se com outros militantes da cultura ou reunir-se com ex-colegas envolvidos em problemas de trabalho e desemprego, carentes da solidariedade quente daqueles que se encontram na mesma situação, os únicos que podem trazer alento e estímulo verdadeiros.

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Onde irá Carlos Lobo com seu olhar tranquilo e a voz serena que tanto invejo?

Não saberei nunca e todas essas hipóteses são possíveis. Certo é que vai seguro e não caminha em vão. Debaixo do braço alguns papéis preciosos, destino certo de ideias variadas, pensamentos coloridos preenchidos de intenção e sonho. Ou simplesmente o dom organizado e voluntário duma ilusão magnífica.

Acaricio outra vez o corpo ondulado dos esmaltes coloridos pelo pó mágico transfigurado pelo calor do pequeno forno laborioso, densamente cercado por um universo de alfaias e produtos e artefactos metodicamente alinhados.
Mergulho na vibração espontânea que só as coisas carinhosa e longamente elaboradas possuem, atravessadas pela indeterminação da fantasia e pela casualidade da revelação que apenas à natureza infinita diz respeito.
São obras de expressão condensada que oscilam entre a candura figurativa de visões ingénuas e o desafio enorme da visão abstracta. Quer num quer noutro extremo desse universo existe contudo a marca constante dum diálogo respeitoso e inteligente com materiais de utilização subtil e misteriosa. Um elaborado processo de descoberta e encantamento.
O consenso de simpatia e de afabilidade que geram os espíritos da categoria de Carlos Lobo tornam quase dispensável mais esta conversa de pintor. Todos o conheceram e todos o estimaram. Todos vão elogiá-lo e dizer que pessoas assim fazem imensa falta.
A ilusão contudo também cansa, e olhar para o mundo e procurar entendê-lo em toda a sua conflagração de paixões divergentes é como descer uma escada de expectativas que parece não ter fim.
Enquanto estivermos vivos é que vale a pena dar atenção às pessoas, escutar a mensagem quente e útil que possam querer transmitir-nos. Todas os homens bons que desaparecem são mais uma razão para dar ouvidos àqueles que ainda estão disponíveis e generosamente interessados em prestar seu contributo.
A sociedade concorrencial possui uma lógica impiedosa de categorizar os indivíduos por uma determinada ordem de notabilidades incontestáveis.
A essa norma se sujeitam todos os cidadãos, todos os artistas, todos aqueles que possuem uma ideia generosa e útil escondida em seu coração. O mais certo é que a sociedade não lhes dê ouvidos, e vá ficar perdida mais uma preciosa razão para sentir que se deu um pequeno passo em frente na salvação da própria humanidade.
Na “Invenção do Dia Claro”, disse Almada em seu discurso pitoresco que “quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”.

Carlos Lobo nunca foi uma alta individualidade

Que bom para ele, e que bom para nós que possa um homem ser uma criatura insigne, sem ter que levar uma estátua, ou uma medalha, ou um cargo público, e permanecer vivo como ele por certo fica na lembrança de todos aqueles que o conheceram.

TÚLIA SALDANHA; Curriculum Vitae resumido

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O seguinte “curriculum vitae” (resumido) da artista Túlia Saldanha foi inserido num breve catálogo, cuja capa acima se reproduz, de uma sua exposição realizada por iniciativa dos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, de 24 a 30 de Junho de 1987.

Túlia Saldanha nasceu em Perêdo, Macedo de Cavaleiros em 1930. Foi sócia do Círculo de Artes Plásticas des­de 1967 e fez parte do Corpo Docente desde 1974.

Algumas exposições colectivas:
1968

Em Coimbra: − no Museu Machado de Castro; − no CAPC;
Em Amarante:
− no Centenário de Amadeu de Sousa Cardoso
1971
Em Coimbra:
− “A Floresta”, no CAPC;
No Porto:
− “O Presente”, na Galeria Alvarez;
Em Óbidos:
− na Galeria “Ogiva”
1973
Em Coimbra, no CAPC:
− “Minha Coimbra Deles” e “Aniversário da Arte”.
1974
“Projectos Ideais” na Sociedade Nacional de Belas Artes (S.N.B.A.) em Lisboa
1975
“Semana de Arte na Rua” em Coim­bra
1976
“Alternativa Zero” em Belém, Lisboa,
Encontros Internacionais de Arte na Póvoa de Varzim
1977
“Mitologias Locais” na S.N.B.A. emLis boa,
Cooperativa Árvore no Porto,
Encontros Internacionais de Arte nas Caldas da Rai­nha
1980
Participações:
na SACOM 2 Museu Vostell em Malpartida de Cárceres, Espanha,
“Panorama das Galerias” na Galeria de Arte Moder­na em Belém,
“a Caixa” na Galeria Diferença Lisboa
1981
“25 Artistas de Hoje” no Museu de Ar­te Moderna na Universidade de S. Paulo Brasil, “100 Horas a Desenhar” na Galeria do Chiado em Coimbra
1982
Bienal Internacional de Vila Nova de Cerveira
1983
“30 Horas a Desenhar” Instituto Alemão em Lisboa,
“Exposição Nacional de Desenho” na Cooperativa Arvore, no Porto,
“O Papel como Suporte” na S.N.B.A. Lisboa
1984
“Anti-Heróis, Malditos e Marginais” em Lisboa;
“Pipxou” − Inverno 84 − Galeria Diferença Lisboa
1985
Intervenção no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian Lisboa
1986
II Bienal Nacional de Desenho/85 na Cooperativa Árvore, no Porto;
Faculdade de Direito de Coimbra;
“Agitarte” em Aveiro;
Casa Museu Teixeira Lopes em Vila Nova de Gaia;
Faculdade Psicologia Universidade de Coimbra.
1986
Festa para Ernesto de Sousa;
Como elemento do Grupo de Intervenção do CAPC, participação nos Encontros Internacionais de Arte Caldas da Rainha,
em Coimbra, na S.N.B.A.,
no IADE, no Café Brasileira em Lisboa, etc.
Exposições individuais:
1969, 70, 71 CAPC Coimbra
1974 Galeria Dois no Porto
1976 no CAPC
1979 Gal. Diferença Lisboa
1982 no CAPC Coimbra
1985 na Galeria Diferença em Lisboa
1986 Teatro Gil Vicente Coimbra.
1986 Galeria QUADRUM, Lisboa
1987 Desenho e Pintura Macedo de Cavaleiros
1987 Galeria Almada Negreiros, (aquisições Recentes) S.E.C.
1987 Abertura do Museu de Arte Moderna (Casa de Serralves), no Porto.

Chamo a atenção dos visitantes para a crónica de minha autoria a respeito da memória pessoal que tenho dessa insígne artista e pessoa de raríssimas qualidades humanas, abaixo publicada.

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Esta imagem representa as capas de duas edições do CAPC que me foram oferecidas pessoalmente por Túlia Saldanha e que guardo como importantes documentos da actividade daquela instituição, respectivamente, durante os anos de 1979 a 1980 e de 1981 a 1983.

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Uma artista de elevado nível que Coimbra faz por ignorar

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À “minha Túlia”, a homenagem simples tão só de uma criança
Este artigo foi publicado no Diário de Coimbra no dia 03 de Dezembro de 2006, no espaço “Temas de Domingo”, pg. 20.

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Túlia Saldanha e Inês Paulino, no CAPC, no começo dos anos 80

Carta à minha estimada amiga Túlia Saldanha,

Tenho muita pena de não ter podido estar presente no último encontro que tinha marcado consigo. Realmente estava mal informado sobre o seu estado de saúde quando vi o anúncio de que iria fazer parte dum painel de especialistas para discutir, no contexto das iniciativas da ARCO em Madrid, as actividades pedagógicas ligadas ao ensino e divulgação das artes plásticas, há cerca de uma dúzia e meia de anos atrás.
Já não pudemos encontrar-nos e tive de conformar-me com a sua ausência devido a motivo de força maior. A notícia do seu falecimento consternou, como é tão abundantemente sabido, uma boa mão-cheia de amigos desta velha cidade e tantos outros admiradores que, fora dela, tiveram o privilégio de consigo trabalhar e de consigo viver o gosto e a paixão da arte.

Muitos são os eleitos mas poucos os escolhidos

À engenharia das preferências colectivas e das homenagens públicas se pode aplicar a mesma frase que se aplica a muitas outras situações: diz-me como e quanto homenageias e eu dir-te-ei quem és. Lembro-me disto, Túlia, porque sou reincidente em homenageá-la muito singelamente, por palavras breves mas calorosas de sincera admiração.Por mim não fica a sociedade em falta consigo em salientar o valor seguro do seu labor metódico ao serviço de toda a cultura e de todas as artes, mas, acima de tudo, ao serviço da arte sem academias, nem medalhas, nem poses estudadas, da sua preciosa dedicação pela sensibilidade das pessoas em si mesmas.
Confesso-lhe que tenho tentado uma e outra vez convencer todas as pessoas com quem converso de que há uma enorme dívida pública para com a lúcida atenção que dedicou às artes, às suas técnicas, ao seu exercício oficinal e, principalmente, à sensibilizada percepção dos seus valores mais profundos.

A Túlia pertencia à rara multidão dos eleitos, mas não granjeou a condição de escolhida, por culpa de modéstia própria e do funcionamento fatal da sociedade em que viveu. Venho por isso contar-lhe a pequena palavra de uma criança, em substituição de uma grande homenagem institucional, tentando disfarçar o pecado de ocultação que têm cometido todos os seus contemporâneos e sobretudo os que foram testemunhas, utentes e beneficiários directos, individuais ou colectivos, dessa mesma obra e dessa mesma atenção; A homenagem sem preço do afecto de um menino.
Além de artista e dinamizadora cultural exerceu a minha amiga a profissão de educadora, actividade da qual foi afastada ao final da sua carreira, por um processo burocraticamente lamentável e verdadeiramente kafkiano que talvez pouca gente conheça.Anos antes, porém, fora educadora num infantário do qual era utente um filho meu, criança que, como tantas, lutava com certas dificuldades de enquadramento devido à timidez e à incapacidade de reagir perante o meio já agressivo da comunidade infantil. A problemática que viveu foi um tanto perturbadora, sucedendo-se as conjecturas improdutivas de outras educadoras e até da directora do estabelecimento em causa.
A produção de opiniões em nada resultou até que tivemos a sorte de vir para o infantário Túlia Saldanha, que estabeleceu com o menino um relacionamento sem problemas, que conseguiu integrá-lo no colectivo e que fez desabrochar nele a capacidade límpida duma natureza somente tocada de alguma raridade, sem patologias negativas.
A amizade entre menino e educadora, centrada principalmente no trabalho de expressão plástica que desenvolvia, foi tão caloroso que, desde então, Túlia Saldanha perdeu o seu nome artístico para ser bem conhecida entre nós da forma como passou a designá-la esse menino: “a minha Túlia”.

Fique pois sabendo, além disso, que aqui em casa, falando-se de artistas, não viramos todos o rosto para o mesmo lado donde sopra o vento das amenas conveniências da unanimidade. Artistas, apreciamos todos, e a todos dedicamos a atenção que a obra justifica e merece. Mas não queremos ver na paisagem apenas o lado onde bate o sol das preferências sem questionamentos raros. E a si, cara amiga, para além do conhecimento que temos da grande obra por si desenvolvida e da sua total indiferença pelas homenagens deste mundo, creia que ficou “a minha Túlia” para todo o sempre, no imaginário de uma pequena família sem importância que rememora o seu trabalho inteligente como um bálsamo, e a sua perspicácia humana como um acto produtor de futuro em harmonia e felicidade.

Ainda a respeito de Túlia Saldanha e do CAPC, escrevi mais tarde – numa crónica publicada no Diário de Coimbra, o seguinte:

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Túlia Saldanha, uma presença inesquecível

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“…No dealbar dos anos setenta, quando cheguei a Coimbra, o CAPC era ainda procurado por interessados praticantes que aqui vinham propositadamente frequentar os seus ateliers, sendo dignificante em futuras carreiras artísticas a menção desse facto nos curricula respectivos.
Datam dessa década e da seguinte as visitas que ali fui fazendo, sendo para mim do maior significado a excelente convivência artística e cultural que pude travar nas antigas dependências da Rua Castro Matoso com artistas como Túlia Saldanha e Inês Paulino, para citar apenas dois nomes distintos.
O período seguinte foi caracterizado por convulsões e acontecimentos do mais variado teor que evidenciaram o Círculo como centro de realizações, debates, encontros, participações activas, sessões de divulgação, confronto de atitudes, etc.
As mudanças registadas, no percurso das quais o infausto desaparecimento de Túlia Saldanha não deixou de ser um notável ponto de viragem, associaram-se ao montante geral de transformações da própria sociedade, apagando de forma duradoura aquilo que fora e não mais voltou a ser.
Até aí ligado ao convívio artístico e à aprendizagem e divulgação oficinal das artes com carácter plural e de acentuada modernidade, o CAPC situou-se a partir de então no horizonte da “emergência” da arte contemporânea, numa tendência conceptual que acentuou a “desmaterialização” da arte e o isolamento progressivo da instituição, tendo alguns dos seus mentores mais avançados – o que não deixa de ser curioso – liderado a eclosão do que hoje é um importante núcleo universitário privado do ensino de Belas Artes…”

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Na Galeria Sete, pinturas de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho

Publicado no Diário de Coimbra no dia 17 de Abril de 2010

Recomendo a todos os interessados pela pintura uma visita à exposição “Permanências” que se encontra na Galeria Sete, ao fundo da Avenida Elísio de Moura, desde o dia 10 de Abril, com obras de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho. Os dois artistas evidenciam personalidades artísticas bem caracterizadas e as obras respectivas encontram-se devidamente apresentadas no espaço disponível de modo a não confluírem no mesmo horizonte contemplativo.
Os dois núcleos de obras são completamente diferentes, mas, a oportunidade de ver um conjunto primeiro e o outro logo depois, oferece um desafio mais ao visitante: o de poder viajar entre dois pólos de uma mesma fidelidade a princípios de observação e caracterização do universo das coisas sensíveis, podendo aproveitar a oportunidade para elaborar na mente um conjunto estimulante de relacionações não forçosamente comparativas, mas de valorização mútua de entidades contrastantes.
Entidades contrastantes, poderia ser esse porventura um outro título para a mesma realização conjunta, dado que é o que se nos depara ali: uma dualidade de confrontações, cada uma com a sua temperatura específica, o seu clima visual e a sua intensidade própria.

Na Galeria Sete, pinturas de Miguel Telles da Gama e Pedro Pascoinho


Miguel Telles da Gama apresenta-nos uma galeria de seres anónimos, fragmentários, oclusos, reduzidos a uma teoria de cores neutras, evidenciando a categoria de objectos escultóricos que oferecem pose em silêncio distanciado, página de modelos recortada pela tesoura criteriosa dum esvaziamento premeditado, sistemático, sem piedade.
Essas captações sintéticas afirmam o temperamento fotográfico de cada fragmento, materializado mediante o exercício cuidadoso de uma pintura meticulosa, obediente à focagem, à solidez, ao claro-escuro, ao capricho volumétrico dos tecidos, reminiscência da presença inapagável dos panejamentos da grande pintura.
A força do contraste, neste caso, é-nos revelada pela contraposição de tais elementos com planos de cores fortes, tornados objecto visível por intermédio de um expediente vocabular, título ou legenda de uma circunstância anexa ao sentido gráfico que envolve a totalidade das composições.


Pedro Pascoinho desenvolve perante o nosso olhar um teatro de confrontações de forte poder sugestivo, apoiado numa sistemática exploração de recursos gráficos do universo das revistas vindas do outro lado do Atlântico e de além Mancha, os “magazines” repassados pelo tipismo das gerações de entre guerras, dos seus trajes, adereços, apetrechos e ambientes de trabalho.
Essas figurações desenvolvem entre si uma dose de nonsense e de indeterminação que abrem para o mistério insolúvel amparadas muitas vezes por um manto de espesso negrume que marca a sua presença com uma plasticidade viscosa sem apelo.
O sistema de contrastes é acentuado (também) mediante as diferenças de escala de elementos contrapostos, expediente narrativo que por vezes assume o carácter de uma verdadeira abordagem psicanalítica, queira ou não queira a opção inicial que os colocou sobre a tela.
A execução plástica é fluente, intuitiva, as cores oscilam todas em torno de uma gama abatida na área de tons terrosos aquecidos pela maturidade das coisas antigas, alma residual de papéis deixados a amadurecer nas prateleiras de verão dum sótão de irrecuperável memória.

Pedro Pasc


Os suportes de Pedro Pascoinho acusam, em coerência com o clima plástico que os anima, uma tendência para a originalidade, para o suavemente inacabado, para a margem difusa, para o uso sofisticado de processos simples mas cheios de requinte.

Os painéis de azulejos da Rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes

Os painéis de azulejos da Rua Olímpio Nicolau Rui Fernandes

A seguir às grandes movimentações sociais do 25 de Abril surgiu na longa parede que se estende à frente do Mercado D. Pedro V uma espécie de mural revolucionário de que deve haver escassas memórias em escondidos arquivos fotográficos.
Eu mesmo guardei alguns slides que documentam esse vestígio do entusiasmo popular e que comprovam esclarecidamente que o acto de requalificar esses muros, entre 1984 e 1986, não foi um grande acto de coragem: foi apenas um acto de lucidez mínima, conforme documenta a imagem acima.
Quanto aos azulejos de substituição houve certamente pressa demais em fazer obra e não houve coragem de consultar alguém que estivesse à altura do restante património edificado na cidade. O local, pela sua extensão e configurações seria sempre problemático, não ajudando o facto de ser um espaço que se atravessa geralmente sem olhar para o lado.
Conheci o seu executante como brioso profissional de artes gráficas, o Senhor Amílcar Matias, do qual conservo a melhor recordação pela sua paciente e laboriosa cordialidade. A encomenda que lhe fizeram era coxa, o conceito da obra proposta não se insere nem na tradição monumental da cidade nem na memória que o país (julga que) tem do que são os azulejos como técnica artística de revestimento.
A obra configura-se como uma simples “passagem de slides”, citações tal e qual de ângulos monumentais da cidade de fotogenia elementar. As figuras escolhidas de “postal turístico” são envolvidas por um halo de brancura que produz com a parede envolvente um contacto duma frieza extrema em tudo distanciado de qualquer dos opulentos capítulos da gramática expressiva da azulejaria portuguesa. Uma obra de arte que cobrisse todo o enorme espaço em questão teria que ter sido concebida como um todo organicamente estruturado, com diferenciações no tipo de cobertura e vectores criativos bem orientados quanto ao seu conteúdo plástico e referencial.
Consideremos apenas dois casos concretos de murais cerâmicos que se tornaram emblemáticas dos locais onde se situam: o conjunto de sete painéis de azulejos para a AAC, “A Evolução do Traje Académico” de 1958, de João Abel-Manta, situado em Coimbra apenas algumas centenas de metros mais acima, e o painel da Ribeira Negra de Júlio Resende, à saída do tabuleiro inferior da Ponte de D. Luís I, no Porto, de 1985, exactamente contemporâneo daquele que estou a referir.
Os primeiros estão perfeitamente enquadrados na estrutura arquitectónica de que fazem parte, representam uma pesquisa rica de alusões significativas relativamente ao tema proposto e alternam de forma ideal com materiais de cobertura criteriosamente escolhidos e plasticamente orientados. O segundo é uma obra de estética muito austera e forte sinalização humanista, em suportes de grés vidrado de 30×30, que se cinge à curva ascendente de forma escalonada num aproveitamento ideal da altura a que se encontra, para se tornar visível e atingir força monumental. Infelizmente a obra em apreço não tem nenhuma destas características, não possui potencial simbólico nem expressão emblemática que lhe valha e irá doer enquanto durar, pela insignificância burocrática da concepção que lhe deu vida.
Ao fim de uma geração lá segue desempenhando o seu papel de zona de passagem que não empolga ninguém, de que quase nada se tem falado nem ensina a ver aquilo que a cidade tem de mais valioso.

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Amilcar Matias: Era natural de Casais do Campo, estudou na Escola Avelar Brotero e exerceu ao longo de toda a sua vida a actividade de artista gráfico com extensa obra feita, que complementou com actividades criativas diversas no domínio da cerâmica, da ilustração e do cartaz. Também se dedicava com gosto à pintura que expôs por diversas ocasiões, nomeadamente na galeria do Primeiro de Janeiro, em Coimbra.

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O painel de azulejos do Instituto do Emprego de Coimbra, de Eduardo Nery, na Avenida Fernão de Magalhães, em Coimbra

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Aspecto do painel de azulejo “Jardim da Manga”

Este comentário foi publicado no dia 26 de Fevereiro de 2010 no Diário de Coimbra

Depois de ter falado em datas muito diferentes e distanciadas do painel de azulejos do Montepio Geral e do trabalho de cromatismo urbano do ex-Edifício dos CTT, faltam-me ainda mencionar duas outras obras da concepção de Eduardo Nery que se encontram nesta cidade e que podem ser observadas em espaços públicos. Uma encontra-se no Instituto do Emprego e Formação Profissional, no nº 660 da Avenida Fernão de Magalhães e outra num dos corredores do Centro Cirúrgico de Coimbra, na Espadaneira, ao lado direito da estrada que conduz a Taveiro.
É a primeira destas duas que vai ser aqui hoje brevemente analisada no que tem de plástico-simbólico e no que significa para um espaço público ser prendado com um elemento de valorização patrimonial e artístico, usando para mais essa (dita) singela e muito particular técnica das artes decorativas, tida como sendo um dos mais genuínos exemplos do génio criativo da alma lusa. Mais uma vez se deve a sua criação à centralidade lisboeta pois deriva de uma opção de encomenda tomada na capital pela direcção do então designado Instituto de Emprego que no decurso dos anos oitenta tinha alguma dinâmica interna quanto a aquisições directas para a decoração de espaços onde instalava os seus serviços. Aliás, foi também uma empresa de Lisboa que foi encarregada da execução do painel e da sua aplicação no local em 1988, a Azularte, Lda.
Tem a particularidade de conter uma alusão ao património arquitectónico da cidade de Coimbra, mas essa escolha deve-se à sensibilidade do artista e às suas memórias e não a qualquer outra razão específica.
É um trabalho que tem como suporte os mesmos azulejos de chacota grossa que fazem o regalo de espaços nobres e selectos mas que oferece para além disso a sugestão do fantástico e do inesperado: o familiar mas esteticamente requintado templete do Jardim da Manga arranca para o céu como se fosse uma nave espacial, quebrando a serenidade monástica do convento de Santa Cruz em cujo segredo tantos anos viveu, rodeado de silêncio e de pensamento. É uma ruptura feita a partir da naturalidade tranquila dum painel à maneira do Sec. XVII, conformado com o seu branco e azul e com a sua perspectiva renascentista, em cujo ponto de fuga se opera a “explosão” dinamizadora da figura que ascende aos céus animada de velocidade e evidenciada pela cor amarelo laranja. As próprias peças cerâmicas que no motivo inferior se encontram ordenadas em malha vertical/horizontal, ganham um dinamismo que passa pela meia esquadria e atinge a inovação de deixar vazios certos sectores do painel que revelam a própria base do reboco de suporte, com azulejos aplicados “ao acaso”, animados pelo acidente explosivo da inesperada “nave do futuro”…
A transformação que a realidade presente veio trazer ao ambiente claustral de antanho não é excedida em muito pela sugestão da nave espacial já mencionada. Para os frades que ali leram e pausadamente meditaram, a passagem de milhares de automóveis e autocarros, o rio de gente e o ruído, pouca diferença fariam da explosão de uma nave que os derrubasse de espanto e de antecipação mágica. Aqui, como em muitas situações da vida, a realidade equivale a própria ficção e rouba lugar ao sentimento de surpresa ou à capacidade de ilusão que resta no nosso espírito.
Esforçando-se por alcançar alguma coesão com o espaço envolvente, Eduardo Nery insistiu em alargar a sua intervenção à barra inferior e aos pilares de suporte, para criar uma complementaridade com a arquitectura do local e para que o tema do painel não parecesse tão despojadamente casual como em princípio poderia ficar se lhe faltasse esse remate ambiental.

O painel de azulejos do Instituto do Emprego de Coimbra, de Eduardo Nery, na Avenida Fernão de Magalhães, em CoimbraO mesmo painel numa visão mais geral. Notar a barra inferior que se prolonga mais para a esquerda e a cobertura azulezar do pilar situado ao lado direito da imagem, referidos no texto acima

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Manuel Cargaleiro no Museu do Vinho Bairrada, na Anadia

Cabral Moncada

Manuel Cargaleiro, painel de azulejos, 1992; visto site Cabral Moncada Leilões, pesquisa internet.

 

Publicado em 20 de Janeiro de 2010, no Diário de Coimbra

Naquele Sábado apresentei o meu neto a Manuel Cargaleiro. A cena toda começou comigo a chegar atrasado e a ter de me armar em fulano da imprensa para furar sem cerimónias por uma sala já à cunha para assistir a uma sessão impregnada pelo orgulho legítimo de uma comunidade trasbordantemente presente. O dever de ofício constrange-me a dizer coisas insignificantes como ter falado com fulano, ter ouvido falar sicrana, ter sido abraçado com emoção à frente de toda a gente por António Pedro Pita e ter tido pena de comer tão pouco leitão e apenas provado o vinho.
Importante foi ter apresentado o meu neto a Manuel Cargaleiro sem ter tido a coragem imaginária de lhe dizer a verdade magnífica: olha, este senhor é que me ensinou a pintar antes de passares tu a ser meu professor em artes. O meu neto Flávio, além de ser a minha mensagem genética ao futuro do Universo, descobriu e ensinou à Vóvó, que é uma ingénua celestial em mecanismos técnicos, como é que funciona aquele saca-rolhas do Museu que ele conhece de ginjeira de casa do avô Vítor.
Quando me apanhei frente daquele que não é Cristo mas a quem todos chamavam Mestre, fui dizer-lhe assim: conheço Manuel Cargaleiro muitíssimo bem há mais de quarenta anos e vinha apresentar-lhe três gerações de olhares convergentes nas sumptuosas simplicidades produzidas pelas suas mãos que me fazem lembrar as do meu avô mas de facto era impossível porque mal tem idade para poder ter sido meu pai.
Agora que me desculpe a primorosa e, como é tradicional, opípara, realização do acontecimento e um dos respectivos catálogos, o que diz respeito a MC: Obra Gravada é uma expressão que pode estar (e estará) correcta, mas acorda no apreciador ansioso uma gama tão vasta de expectativas e horizontes que me obriga a falar da distância formidável a que se encontra a vibração matérica dos originais propriamente ditos. Uma tela é uma tela; as gotas de tinta têm a espessura de rastos de sangue fossilizado por um dramatismo sem tempo; a passagem de um pincel arrastado com suavidade por sobre outra camada de tinta deixa um tracejado de vestígios que só a alma vê, se tiver vícios de uma sensualidade que cavalga a utopia. Para dizer bem isto só, por exemplo, Agustina Bessa-Luís, e eu era lá capaz de escrever um artigo para o Diário que chegasse aos calcanhares da grande Senhora.
Já lá voltei à Anadia, sem o Flávio, a mana e o pai, para ver tudo mais uma vez. O Flávio agora tem mais que fazer do que mergulhar na “pintura vitoriosa” de uma varanda que “é a coisa mais importante que há numa casa” e nos “jardins suspensos” como os de Sintra que têm muitos nomes “e descem dos muros como um lenço de lágrimas”.
Já lá voltei, como ia dizendo, para ver de facto o que há para ver e o máximo dos máximos é um filme que é mostrado numa salinha estreita com tamboretes forrados de negro que não deixam adormecer ninguém. Fala Mestre Manuel Cargaleiro, vêem-se montes de coisas de agora e do meu tempo e convive-se com o sorriso impassível do artista.
As obras que estão patentes servem para que pessoas como eu consigam alcançar para além das cristalinas ilusões de quem ama sobreviver no corpo e pelo espírito e persiste na teimosia de reviver todas as sensações deste e de outros mundos.

Cargaleiro-Museum

Manuel Cargaleiro; óleo s/ tela 1979; Museu Cargaleiro / Castelo Branco (pesquisa internet)

.Tudo isto na Anadia num centro cultural que tomara Coimbra e só tenho de dizer um dia destes ao Senhor Litério Augusto Marques que a sinalização está tão bem feita que até eu que sou um tipo desenrascado a chegar a sítios me vejo, sempre que lá tenho ido, em palpos de aranha para chegar ao Museu do Vinho Bairrada.

Métro station Champs-Elysées-Clémenceau (3)

Manuel Cargaleiro, painel de azulejos,  Paris; Métro station Champs-Elysées-Clémenceau, pesquisa internet blog Paris-bise-art

Escrevi uma primeira versão do comentário a este acontecimento, que guardei sem publicar, e que me atrevo a mostrar a seguir, por diversas razões que vão sublinhadas a bold:
Foi a exposição de Manuel Cargaleiro em 1973 na Galeria São Mamede em Lisboa que me repassou de indeléveis emoções, como ainda hoje acontece sempre que me encontro com obras suas, e bem recentemente assinalo a exposição que esteve presente no Museu Municipal de Coimbra, a qual não tive o ensejo de referir apreciativamente neste mesmo Diário de Coimbra. Temos todos agora a oportunidade imperdível de visitar uma mostra de múltiplos de sua autoria, de diversas épocas, no Museu do Vinho Bairrada, na Anadia.
Entre outras prendas dessa iniciativa tenho a salientar a projecção de um filme a respeito do Mestre que corre repetidamente durante 50 minutos – à discrição de qualquer visitante, e que recomendo de uma forma inequívoca. Pegando nas próprias palavras de MC ao longo desse documentário refiro a sua admiração pela obra de Henri Matisse. Aligeirando um pouco a pressão anímica que me estorva de dizer porventura aquilo que deveria, formulo apenas uma pergunta que muitíssimo ou nada pode ter a ver com tudo isto: Será Manuel Cargaleiro o Henri Matisse português, ou será Henri Matisse o Manuel Cargaleiro francês?
Qualquer resposta a esta pergunta será tão tonta como a pergunta em si mesma, servindo-me eu dela, aqui e agora, para me libertar do peso opressivo de ter de dizer tudo aquilo que deveria caber no meu discurso e não cabe.
MC tem sido caracterizado por uma certa crítica atabalhoada como um decorativista assumidamente feliz com o mundo, detentor de pleno sucesso, privilégio insuportável para certas almas tão abundantes como presumidas. Uma outra versão não menos precipitadamente redutora costuma referenciá-lo como sucedâneo venturoso vagamente protegido de Maria Helena Vieira da Silva.  Não tenho tempo a perder com idiotices mas estou disponível, agora ou em outro local a combinar, para desmontar de maneira incansável e apaixonada o desastroso disparate destas presunções sem tom nem som.
Tive, há cerca de 30 ou 40 anos atrás, a oportunidade de ver um filme documental em que o próprio artista tinha a suma coragem e a generosidade raríssima de dar a conhecer de forma franca o seu modo de estar frente à paleta do óleo ou perante a estante do inventor de obras cerâmicas. Executou, nem mais nem menos, à frente de todo o mundo, a forma como congeminava e levava a termo o mesmíssimo tipo de obras que já então eram entendidos e admirados por todos os seus inúmeros seguidores. Retirar desse modo ao gesto criativo o segredo da intimidade não o enfraquece nem o diminui. Permite sim que se escreva na parede luminosa da sensibilidade, em letras bem visiveis ao longe, uma mensagem de convívio directo com o espírito das artes e com a alegria do gesto consequente.

Fotografias de J.M.F. Coutinho na Livraria Almedina estádio, em Coimbra

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lagrima

 

Publicado hoje, 15 de Janeiro de 2010, no Diário de Coimbra

Fazer fotografia pode ser um simples passatempo ou uma vaga vocação de registo de imagens marcada pelo sentido da contingência do tempo, das coisas ou dos seres.
Há, contudo, um reduzido número de pessoas que fazem fotografia como um pintor pinta, como um actor de teatro representa ou como um poeta constrói os seus poemas. Ou seja, para sobreviver. Para manter com a realidade e toda a complexidade de que ela se reveste uma ligação mais estreita, essencial e expressiva; uma tentativa de equilíbrio de forças que nos restitua aquele sentimento indispensável de pertença, de domínio, de entendimento das coisas.
Registar as imagens, por conseguinte, como tentativa de materializar impressões que merecem sobreviver e que jamais “aconteceriam” para além do seu segredo mágico, salvas da infinitude das coisas desconhecidas pelo privilégio do olhar.
O fotógrafo torna-se pois intérprete e tradutor de uma coisa imponderável, diferente e destacada do próprio objecto da imagem em si, uma transcendência nova, uma criação, em suma.
J.M.F. Coutinho é um fotógrafo que se situa exactamente nesse ponto de vista, tendo além disso o hábito de querer arrastar consigo uma quantidade de outros artistas, na senda de uma procura sem fim. Serve-se de todos os meios das modernas tecnologias ao seu alcance para fazer confluir inventores de imagens, praticando uma militância de generosidades que se torna rara na voragem de indiferenças de um quotidiano tantas vezes vencido pelo turbilhão das imagens sem sentido, pela torrente invasora do excesso televisivo, publicitário, propagandístico.
Olhando um conjunto de fotografias suas organizo o que vejo entre dois extremos tipológicos. Num deles amostras da realidade, objectos e seres nomeáveis, marcados entretanto por uma economia expressiva que os coloca muito perto do silêncio, da solidão e duma preocupação de mostrar apenas o essencial. No outro extremo a componente documental vai-se rarefazendo, dando lugar a uma visualidade pura, transformando o objecto ou a porção captada do real em exploração de texturas compactas ou densidades subtis. A luz, a água, a transparência ou a natureza palpável de objectos ainda perfeitamente identificáveis, por vezes, transformam-se em “acontecimentos” autónomos que não ouso classificar de abstractos, mas que independem largamente da sua matriz visual primária. Uma tal procura torna essencial o visível conferindo-lhe uma dimensão filosófica pela austeridade dos meios, sem lhe furtar a componente poética pela carga de “equívocos” ou de mistério que consigo transporta. No meu entender a sólida substância de que se constroem muitos dos trabalhos de J.M.F.Coutinho torna fácil memorizá-los. Tomo por isso a liberdade de os purificar da sua categoria de objectos legendados, ou legendáveis. E ao folhear as suas imagens, quanto mais olho, mais vejo. É este, penso eu, a função primordial da diligência de qualquer artista de artes visuais: dar a “ver”, de forma amplificante, uma certa captação das infinitas faces do mundo. Amplificante, no sentido em que daquela única imagem podemos extrair muitas imagens, ou muitas percepções do mesmo objecto retratado. O objecto ganhou vida própria, transformou-se numa entidade autónoma face ao próprio motivo e à sua circunstância.

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Fotografias de J.M.F. Coutinho na galeria da Livraria Almedina, ao estádio Municipal da cidade de Coimbra.

J.M.F. Coutinho e a sua obra fotográfica

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infinito


Conheço de J.M.F. Coutinho, isto é José Manuel Ferreira Coutinho, artista fotógrafo, por um variado conjunto de textos escritos que divulga na internet a respeito do seu percurso pessoal e ficheiros gráficos anexos, além de uma variada presença noutros sites especializados em fotografia.
Tive ainda acesso a um volumoso pacote de originais seus, o que alargou bastante a memória que tinha da exposição que fez no edifício Chiado, as “Filosografias”, e melhor me lembraria se para esta mesma mostra tivesse sido feito um catálogo, como é hábito na instituição relativamente à generalidade dos artistas que ali expõem e que se justificaria plenamente pelo mérito das obras expostas.
Vou deixar de lado o evidente prazer (ou necessidade) que sente em titular os seus trabalhos, depois mesmo de ter lido a defesa que faz dessa atitude. Lembro-me agora que também eu coloco títulos aos meus trabalhos de pintura. Com a diferença que os títulos que coloco aos meus trabalhos “nada” têm a ver com o conteúdo plástico dos mesmos. Ou seja, fogem deliberadamente a qualquer coisa essencialmente inerente à sua matéria plástica. Não confluem. São apenas um eco que, numa parede oblíqua, atira para outras paragens a multiplicidade das leituras possíveis. Ficam por isso ligados apenas à sua “matéria crítica”. No meu entender a sólida substância de que se constroem muitos dos trabalhos de J.M.F.Coutinho torna fácil memorizá-los. Tomo por isso a liberdade de os purificar da sua categoria de objectos legendados, ou legendáveis. Tenho uma das suas vinte e cinco fotografias aqui ao meu lado, e tenho olhado para ela à medida que venho escrevendo este texto e cada vez me sinto mais capaz de “vê-la” por dentro da sua complexidade, da sua espessura significativa. Como tenho as vinte e cinco fotografias sobrepostas faço agora um outro exercício de observação: Substituo a primeira das provas observadas por uma outra da série que aqui possuo. E o fenómeno do ganho de legibilidade repete-se a cada mudança de imagem.
Chegando a este ponto da apreciação do trabalho de Coutinho é praticamente supérfluo dizer que se trata dum diligente militante de causas artísticas, envolvido em projectos muito ambiciosos de agremiação cultural, envolvendo muita gente de muitos lugares.
Leio mais uma vez alguns dos seus textos e acho significativa a associação da calma e da serenidade, que usualmente valorizam e caracterizam os seus momentos de captação de imagens fotográficas.
É muito interessante fazer a conotação desta ideia com o conjunto de trabalhos que produz e aprender com isso a associar a atitude de olhar com a capacidade de ver. Encontrar, sobretudo, na pluralidade dos objectos e dos lugares que coloca ao alcance do observador aquela “pico” de tensão, que gosta de chamar “punctum”, à maneira de Roland Barthes, e que de forma tão particular pode ser chamado a referenciar algumas das suas captações.
A tranquilidade observativa, um certo culto do “silêncio”, são de facto condimentos particulares do seu modo de ver. Esse princípio ordenador conduz-nos a uma outra dimensão das suas observações: a tendência de sintetizar, de confinar ao essencial os meios de que se serve sem que eles percam a opulência expressiva. Uma imagem pode ser reduzida ao seu essencial, pode não depender de efeitos documentais e de focagem, pode “transgredir” até e não perder a capacidade de nos esclarecer, dando-nos prazer e provocando-nos emoção, ainda conforme Barthes. Alguma arte fotográfica parece conduzir esse princípio de economia de sinais a um despojamento tão extremo que subtrai inteiramente ao observador o motivo de olhar para ela. J.M.F. Coutinho é um homem delicado e não quer seguramente deixar-nos de “olhar vazio”. Algumas das suas sínteses mais concentradas são, aliás, aquelas que mais emoções nos comunicam. Umas vezes através da alusão poético-simbólica, outras vezes mediante o reforço da plasticidade dos elementos colhidos, por uma concentração de valores significativos de encontro à sua própria saturação.

segredo

No Edifício Chiado, em Coimbra, pintura de J. M. Bustorff (Ícaro espera por vós…)

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Ikarus ou homâge à El Greco, 2009 Têmpera a ovo com pigmentos s/ tela 220 x 220 cm


Não estamos em Creta, mas talvez nos encontremos de certa forma no exílio. O Rei Minos veste-se de mil disfarces e o voo de Ícaro perde sustentação despenhando-se sobre um mar de sombras desconhecidas, fragmentando-se em inúteis penas desirmanadas aquilo que foram asas, derretidas pelo sol impiedoso que condena sem remédio a cobiçosa ânsia de altitude, de fortuna e de domínio ilimitado de horizontes. A visita à exposição de Jochen Maria Bustorff desenrola-se toda dentro da sala iluminada e encanta-nos Mozart, a finura da sua musicalidade, da mesma forma que nos confrangem os alucinantes desastres da guerra, a semi-oculta paixão de Cristo pela carnavalesca contradição da desconcertada violência e nos aquece o sangue a cálida presença de mulatas estendidas ao sol, algures perto dos trópicos. Mas Ícaro está lá, à entrada da exposição, como um aviso solene pelo qual passamos quase distraídos, como se nada fosse o espectáculo de um homem despenhando-se na vertical, complicado pelos remotos mistérios do mito e pela teatralidade do drama barroco. Homenagem a El Greco ali se diz mas pergunto eu se não se tratará com efeito de um outro retrato de todos aqueles que olham muito e confusamente procuram organizar na mente a acumulação de sinais, o coro de gritos, a chinfrineira das campanhas.
Olha, aquele tipo vai de cabeça a fundo, dirão alguns. Os mais tímidos poderão pensar, não sem algum temor, será aquilo o retrato de algum de nós? Jochen Maria Bustorff, cujos cruzamentos com a identidade cultural portuguesa conduziram o seu próprio nome à curiosa assimilação simplificante de José Maria Bustorff apresenta aqui uma pintura de tão genuína autenticidade que dispensa as habituais referenciações estilísticas e a enumeração das dignificantes influências matriciais.
Bustorff evidencia a vitalidade própria das grandes culturas e dos homens cujo destino parece conduzi-los a medir forças com o mundo em geral, numa recusa evidente desse relativismo fácil em que se deixa enlear a maioria. Vários continentes, uma apreciável pluralidade de horizontes e uma multidão de alusões complexas fazem parte do seu campo de pesquisas, vivências e questionamentos de natureza universalista, logo, tendentes a ultrapassar toda e qualquer contingência ou limitação atribuível ao “meio”.

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Via Láctea, 2000-2005 Têmpera a ovo com pigmentos s/ tela 300 x 600 cm


A técnica que exibe em formações de vocação monumental é duma enérgica virilidade, rica de todos os equívocos da visão prospectiva da complexidade do mundo em desdobramento de alusões concretas possíveis de decifrar e de esclarecer (ao que o pintor não se escusa numa aberta franqueza de propósitos) não isentas contudo do confortável recheio de paradoxos que tanto estimulam a mente sequiosa do sagrado fascínio da pintura.
A tecnologia de que lança mão é toda fruto de pesquisa e de fabrico próprio (têmpera de ovo, pigmentos de origem remota, resinas autênticas e outros expedientes oficinais genuínos) e os suportes apresentam-se libertos de todos os complexos de loja de artigos de pintura. Aqui e ali eles próprios fazem parte da “pintura” que se deixa ver, denunciando a visão instantânea e o gesto rápido.
Da exposição fazem ainda parte uma notável galeria de retratos de pessoas anónimas, figuras de sociedades ainda distantes, de culturas recheadas de humanidade de que apenas temos a vaga ideia por noticiários geralmente assustadores de realidades traumáticas. São retratos de gente como nós e ajudam a saturar de humanidade este acontecimento artístico, que tem muito que se lhe diga e para o qual todos os meus leitores estão empenhadamente convocados, caso se deixem impressionar pelo que fica dito.

No Edifício Chiado “ciranda de muitas luas” de Roberto Chichorro

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Publicado no Diário de Coimbra de 3 de Novembro de 2009

Em mais uma realização em torno da ideia da pintura como visão do mundo oferece-nos presentemente a Galeria de Exposições Temporárias do Museu Municipal da Cidade de Coimbra uma “ciranda de muitas luas” construída com obras de vária natureza da autoria de Roberto Chichorro.
A mostra evidencia uma cuidadosa generosidade expositiva, com reminiscências do trabalho do artista em obras de certa antiguidade, mescladas com outras de mais recente produção e com exemplares de várias modalidades de expressão artística.
Diz-me o dicionário que uma ciranda é uma joeira ou uma espécie de dança popular. Mais me diz que cirandar é “andar de um lado para o outro nas lides da casa”.
Tenho dificuldade em fixar-me em cada uma destas opções, embora o nome por si mesmo, ainda que distante de qualquer significado, já tenha seu movimento garboso e uma graciosidade inexplicável.
As muitas luas coroam a totalidade de sentidos com uma solenidade nocturna que está bem expressa num abundante número de obras de Chichorro que – não obstante – nos oferece uma pintura feliz.
Dizer pintura feliz não é dizer pouco, embora as categorizações habituais não se conformem com uma tão grande simplicidade classificativa e prefiram afirmar coisas mais substanciais de nível “onírico e surreal” ou envolvendo a sugestão do “cubismo pictórico”.
Eu dou-me por satisfeito chamando esta arte pelo nome, dizendo que é feliz, poética, aromática e suavemente nocturna.
Se a chamo nocturna, acrescento que é feérica, vibrante de cores, e as luas – de facto – transportam consigo a carícia morna de noites cálidas de odores acentuados.
As figuras presentes convivem frequentemente com animais até ao ponto de se resolverem em metamorfismos como ressonância de energias secretas e mitologias remotas. Porém, além da sugestão simbólica da música há como que uma gravidade nostálgica em todos os presentes, um silêncio contemplativo de inseguras expectativas.
Abstenho-me quanto à familiaridade anunciada entre esta pintura e a de Chagall, e também não me perco em considerações complexas de africanidade relativa naquilo que toda a pintura pode ter de localmente imagético ou de apelo universalizante.
A pintura de Roberto Chichorro, apesar de fortemente intuitiva, solta, impregnada do gesto livre, construída à base de manchas que entre si travam um diálogo permanente de correspondências e contaminações tonais, parece-me predominantemente cerebral. Cada figura ou cada grupo de figuras se apoia ou é enquadrado “cenograficamente” por elementos estruturantes de raiz geométrica, mesmo que muitas vezes habilmente atenuado o seu efeito mediante a liberdade do tratamento cromático e com o apoio de variado leque de soluções de complemento gráfico.
A variedade de espaços assim dinamicamente modulados é intuitivamente apropriado pelo pintor das mais variadas formas, entregue a uma evidente espontaneidade de execução e ao notório prazer de acrescentar tonalidades contrastantes, gestualismos variados, tracejados, referenciais de registo caligráfico, etc.
Por detrás de algumas figuras ergue-se a estruturação geometrizada de painéis ou tapeçarias numa simpatiquíssima alusão às artes cerâmicas, de que o artista não deixa de dar testemunho em obra feita noutro sector da sua produção, que se alarga em exemplos eloquentes de imaginário escultórico pleno do referencial surrealista.

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A não perder, obras artísticas de Roberto Chichorro no Museu Municipal de Coimbra, Edifício Chiado, até 21 de Novembro.

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MÁRIO SILVA, obra total em revisão no CAE da Figueira da Foz

 

MS-01Este texto foi publicado na Revista de Informação do SBC de Março/Abril de 2009

No CAE-Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz esteve patente a exposição que comemorou a totalidade da carreira artística do conhecidíssimo pintor Mário Silva.
Os mais de oitenta trabalhos expostos pretenderam documentar com eloquência a quanto monta o valor e a importância do seu percurso criativo.
O que mais me impressiona é pensar que, para além do esplêndido conjunto que ali esteve patente, seria possível organizar com outras obras suas, mais uma boa mão cheia de outras exposições do mesmo nível.
Esta revista tem um cunho essencialmente sindical e não fica nada mal, para começar este brevíssimo texto, assinalar um facto cru e singelo de que me tenho apercebido através do convívio de amizade que tenho tido a grata possibilidade de manter com Mário Silva.
Tratando-se de um dos nomes mais referenciados no elenco de criadores de arte do nosso país, e tendo atingido – sobretudo a partir do início deste século – o grau do mais elevado nível de glorificação pública que é possível a um artista português, ele é apesar de tudo – ainda e sempre – um homem que é obrigado a batalhar dia a dia o seu pão, os meios indispensáveis com que se sustenta a si e à sua família.
A minha apreciação artística fica encurtada de algumas linhas e ninguém sabe o quanto me custa devido ao entusiasmo discursivo que desatam em mim os seus trabalhos. Não quero, como faz a crítica em geral, endeusá-lo como artista e esquecê-lo como homem, nas curvas e contra-curvas de uma existência longa e profícua (79 anos de homem e 50 de artista), tendo ainda que se levantar de manhã cedo todos os dias sem ser só para dar milho às rôlas.
Egoísta e hipócrita é esta a democrática sociedade em que vivemos que põe a dureza e as dificuldades da vida ao alcance de qualquer um, mesmo que genialmente criador de raríssimos bens do espírito. Adiante, mas fica dito por ser verdade.
O conjunto dos trabalhos expostos impressionava profundamente pelos mais variados motivos. Constituíam antes de mais uma glorificação da pintura como linguagem expressiva e complexa, para além de serem uma exaltação do espírito das artes no seu todo, como elenco de utensílios do homem para a comunicação, a sensibilidade e o aperfeiçoamento das categorias do olhar e dos sentimentos.
Alguns dos trabalhos expostos eram organizáveis por grupos expressivos dentro daquilo que o artista produziu de mais emblemático e articuladamente estilizado. A quase todos era possível, entretanto, atribuir a categoria de peça única, achado feliz, prodígio da felicidade criativa.
Não é necessário citar fontes de influência ou referenciais estilísticos. A arte de Mário Silva, profundamente centrada no homem, foi-se desenvolvendo com saudáveis e sugestivos desvios de percurso por entre algumas das principais escolas de expressão artística do Século XX. O expressionismo, o abstraccionismo e o surrealismo (entre outros) e coloco-os por esta ordem não sei bem porquê, nem tem grande mistério a razão porque o faço.

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O espaço vazio das cidades e a sua atmosfera saturada de emoções aparecem suspensos e exaltados nas suas paisagens por uma segmentada iridescência, reflexo de vidros coloridos, alinhados ao longo de inumeráveis “linhas de fuga e de força”.
São o reflexo de caleidoscópio que traduzem o intraduzível, que transformam aquilo que não tem corpo em matéria de sensibilidades vivas.
A cor livre, a mancha e o traço desenvolvem-se inúmeras vezes longe da regular ordenação formalista, ao sabor duma liberdade sem canon. A sua vibração, contudo, traz-nos sempre qualquer coisa de misteriosamente expressivo senão deste mundo, dum outro qualquer onde não nos importaria viver, pela beleza, pela frescura, pela elegância.
Os grupos de figuras, de rostos, de gente oriunda de todos os mistérios e sobressaltos são a presença teatral da complexidade do mundo em palpitação de conflitos apocalípticos e razões sem margem.
Centralidade do homem e da palavra celebrada, exaltante e sonhadora. Mito e máscara. Poema e gargalhada. Linguagem universal, pintura sem fim.

“Margens do mundo” de Alcina Almeida na Casa Municipal da Cultura

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“Margens do mundo” de Alcina Almeida na Casa Municipal da Cultura
Publicado no Diário de Coimbra de 27 de Abril de 2009

Repasso pelas palavras que escrevi em Dezembro de 2005 a respeito da exposição que Alcina Almeida efectuou na mesma Casa Municipal da Cultura onde se inaugurou, no passado dia 17 de Março, uma nova exposição sua. Poderia repetir quase tudo o que disse nessa ocasião não só por ser verdade, mas também por se recolocarem algumas das razões então apresentadas quer quanto à atitude da artista enquanto pessoa, quer no que toca ao conjunto de obras apresentadas.
Uma diferença essencial convém entretanto assinalar: se nessa primeira exposição nos apresentara um significativo conjunto de trabalhos de rara solidez plástica e de invulgar concentração emocional, ousa agora empreender o que não custa designar como uma exposição “de juventude”, ou seja, a apresentação de uma variedade de novos caminhos correspondente à diversidade de explorações entretanto efectuadas, marcadas por equivalente sentido de responsabilidade e amadurecimento estético.
A pintura abstracta, seja qual for o grau de informalismo respectivo ou as possíveis conotações de lirismo que consigo transporte, é agora um território definitivamente assimilado pela generalidade dos frequentadores de museus e galerias. Já ninguém se desconcerta perante linhas, pontos e planos ordenados de forma mais ou menos arbitrária de acordo com as visões e percepções da intuição plástica do artista, cujo olhar está liberto de todos os escolhos e turbulências do universo das coisas nomeáveis.
O suporte vazio acolhe o trabalho criativo da forma mais descomprometidamente livre, o que não significa que entre matéria e entendimento, entre gesto e olhar, não tenha de estabelecer-se uma elaborada teia de compromissos que pressupõem o método, o esforço coerente e a adopção de códigos estáveis.
Esta ordem de razões encontra-se suficientemente exemplificada mediante alguns dos conjuntos de obras que Alcina Almeida nos apresenta, pelo sentido de projecto que os anima e pela coesão plástica que evidenciam.
Sobre as suas telas desenrola-se um desfile incessante de novos seres ou entidades significativas, organicamente dispostas em confrontações dinâmicas, de peso, espessura e densidades variáveis, que desafiam leituras sucessivamente diversas e percepções capazes de se alterarem de acordo com a disponibilidade e a predisposição de quem as observe.
O gesto, o tempo e os acasos da execução encontram-se documentados aqui e ali, por vezes de modo evidente e outras quase imperceptivelmente referenciados. Nalguns casos pode identificar-se uma atitude de quem ousou conduzir o seu trabalho até às últimas consequências, noutros se poderá dizer que a pintora se ficou pelo que era essencial, deixando a cargo do observador a tarefa de adivinhar o que não falta porque se encontra determinadamente subentendido.
No remate das impressões que aqui resumo a respeito do trabalho da artista, tomo a liberdade de citar uma frase que escrevi no já citado texto de há quatro anos: Alcina Almeida é profundamente pessoa ao mesmo tempo que se revela a si mesma como talentosa artista, cujo pensamento flui em cada gesto, exprimindo-se com elegância e gosto em praticamente tudo o que faz.


A respeito dos públicos que continuam a frequentar salas de exposições observar-se uma instabilidade acentuada do olhar, uma pressa – ou uma incapacidade – de mergulhar de forma decidida na espessura significativa das obras expostas.
A elementaridade do “gosto, não gosto” fica sempre aquém duma capacidade de leitura sustentada, da coragem duma decifração mais íntima, pertinente e espiritualmente produtiva de explorações autónomas e criativas.
Quanto à disponibilidade do corpo social para apoiar e estimular a criatividade do espírito cultural e artístico, então, nem é bom falar. O alheamento demissionário é de regra.
As altas dignidades de outros tempos guardaram para nós o espólio de uma atenção que, se não era distintamente intelectualizada, teve a virtude de conservar o território revisitável de requintes de várias épocas e do seu sentimento lúcido.
A desaceleração no interesse pela obra de arte como testemunho de valores produtivos não denuncia uma simples alternância de propósitos culturais, ao que julgo. O que está em causa é uma autêntica perturbação sistemática dos valores da duração espiritual.

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O ex-edifício dos CTT, os males que nunca vêm só e a cor que é alma de cidades

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A cor das cidades não é um factor casual e despiciendo do seu carácter e do seu espírito. Os edifícios que nelas existem podem ser mais ou menos opulentos, os locais onde se encontram e por onde circulam os seus habitantes podem ter um cunho mais ou menos notável, e são o seu corpo.
A cor duma cidade, como a sua luz, os seus odores, a música do falar dos que nela habitam são, contudo, a sua alma, a parte mais subtil do seu património sensível.
Uma das formas mais perversas de desacautelar a imagem de qualquer coisa, seja pessoa, casa ou cidade, é deixar que tudo se vá gradualmente desqualificando, vá decaindo até ao ponto em que já não vale a pena pegar em nada porque tudo se encontra sem remédio.
As recentes notícias a respeito do que foi o edifício dos CTT na Avenida Fernão de Magalhães são o pretexto para falar desse aspecto das coisas e para abordar também alguns aspectos anti-estéticos daquela poluidíssima artéria da cidade de Coimbra.
Tenho comigo a gravação de uma conversa que mantive em 2004 com o pintor Eduardo Nery, autor da cor exterior desse edifício traçado nos anos oitenta pelo arquitecto José Oliva Martins de Carvalho, durante a qual abordou com detalhe as suas obras existentes nesta cidade e, bem assim, os critérios subjacentes a essa encomenda que, diga-se de passagem, não lhe foi feita por entidade aqui sediada mas sim pelos serviços centrais dos CTT (tudo ou quase tudo entre nós tem de “passar” por Lisboa, como é sabido).
Possuo também o volumoso catálogo duma importante exposição de Nery realizada em 1997 na Fundação Calouste Gulbenkian que tratou de aspectos da sua arte pública. Na página 207 pode ver-se uma bela foto a cores do referido edifício, cujo triste destino visual tenho acompanhado.
É neste ponto que me ocorre concluir que um mal nunca vem só, dado que as inquietações pelas quais passa um dos mais notáveis edifícios da baixa de Coimbra não se limitam aos problemas intrincados de que falam os jornais. Comparando os diversos aspectos de desvirtuamento que evidencia na actualidade e a fotografia que foi tirada em 1985, por altura da sua construção, mete dó, para dizer o mínimo.
Quem queira observar a baixa desta cidade com um olhar renovado e comece pela Avenida Fernão de Magalhães, terá no ex-edifício dos CTT um lamentável exemplo de como as coisas não devem ser feitas, deixando-se acontecer o pior possível a um edifício que teve uma notável nobreza inicial. A sua fachada principal foi sendo alterada, quebrados e eliminados alguns dos elementos rítmicos de melhor efeito e, da pintura inicial e dos critérios estéticos sob os quais foi idealizada, não restam nem os mais pequenos vestígios.
Para compor o ramalhete de alterações, uma escada metálica exterior de cores militares e conspícuas condutas de ar descaracterizam totalmente a fachada lateral do edifício. O alinhado harmonioso e dinâmico das suas fachadas principais em betão possuía acentuações cromáticas de óptimo efeito, com pontos fortes na torre lateral que confina com o prédio vizinho e na que flanqueia à esquina a entrada principal. O laranja forte era distribuído em camadas horizontais de cima para baixo em tons cada vez mais claros, numa época em que os arquitectos e o próprio gosto dos cidadãos não estava ainda adaptado a cores intensas nas edificações urbanas.
O colorido do edifício suscitou alguma polémica na altura em que foi inaugurado. Penso que a instituição proprietária (sediada em Lisboa…) não terá desenvolvido o esforço necessário ao esclarecimento dum projecto plástico que era inovador, com efeito, mas que tinha por detrás de si uma sólida justificação teórico-crítica e que deveria ter sido mantido no seu melhor para benefício dos seus detentores e da cidade em geral. Não houve coragem, como a própria realidade documenta, para fazer isso.
Cruzar a Avenida Fernão de Magalhães de uma ponta à outra é uma longo trajecto para efectuar com um olhar distraído e ausente, para que não morramos de susto, tentando respirar o mínimo possível para não prejudicar os pulmões. O ex-edifício dos Correios serve para demonstrar que um mal nunca vem só e que também foi derrotado pela insidiosa fumarada dos milhões de automóveis e pelo desleixo negligente de quem deveria ter tomado conta dele.Edif-CTT


Tintim na Lousã

acrílico sobre tela de 0,75 x 0,85, copiado de HERGÉ, L'Affaire Tournesol, prancha 25, por Costa Brites, 1981

acrílico sobre tela de 0,75 x 0,85, copiado de HERGÉ, L’Affaire Tournesol, prancha 25, por Costa Brites, 1981


É perfeitamente dispensável, quando se fala de Tintim, referir atitudes cheias de selecta paixão, como o fez Hergé por suas próprias palavras, a respeito de algumas qualidades do seu herói: “… o heroísmo, a coragem, a sinceridade, a malícia e o desembaraço”.
Tintim não usa porta-moedas, não preenche declarações de IRS, não tem horário de trabalho e, se sai de casa, não deixa atrás de si preocupações ou compromissos de pais, irmãos ou avós. Não é adepto de nenhum clube de futebol, não tem religião e, como se tudo isto fosse pouco, também não é casado nem sequer tem namorada.
Por tudo isso, Tintim entra no domínio da abstracção, do encantamento distanciado de quem se dá ao luxo de ignorar toda a realidade e arredores. Por arredores quero eu dizer: o amor, o compromisso, a dor, o sacrifício e todas as outras coisas que – diz-se – fazem da vida uma coisa que merece ser vivida. E no entanto… quem não tenha mergulhado numa aventura de Tintim com toda a alegria desprendida deste mundo que atire a Hergé a primeira pedra.
Na minha família mais chegada já vamos na terceira geração de tintinófilos e, atendendo à idade de oitenta anos a que chegou o herói, não é possível pedir mais à tintinófilia familiar. Com uma grande diferença: quando eu era miúdo esperava uma semana longamente ansiosa por mais uma magnífica prancha de saborosas aventuras. Os meus filhos já se regalavam com um álbum inteiro de cada vez, Natais, aniversários, etc. Quanto ao Senhor meu neto, recebeu de uma vez todos os álbuns que havia disponíveis na livraria, com encomenda feita dos números que faltavam. Depois queixamo-nos que a juventude é consumista, que exagera nas suas reivindicações e que é insolente: nós é que temos a culpa. Sirva-nos como indulgência o facto de ter mergulhado com entusiasmo na leitura real e dedicada dos álbuns da primeira à última página, o que não deixa de ser obra num petiz que apenas agora começa os seus anos de escola e já domina com gosto a arte da leitura. De quem é a virtude? da arte de Hergé, não tenhamos quaisquer dúvidas.
Tintim funciona agora como funcionou no passado em tudo aquilo que tem de mais deliciosamente eficaz. Não faz falta a este breve escrito definir com rigor o que foi e é o fenómeno Tintim. Tomo a liberdade de falar apenas de uma obra que fiz com carinho paternal, isto é, uma tela com 0,75 m x 0,85 que ilustra a meu modo a noção da “linha clara”, a fórmula plástica que terá sido reinventada na Bélgica para as histórias de quadradinhos. Representa vinheta e meia da prancha número 25 do álbum “O caso Girassol”, ofereci-o ao meu filho mais velho, para pôr no seu quarto, em 1981, e está bem guardado na cave das recordações afectivas de toda a família. Digo reinventada porque, nada havendo de novo sob o sol, já muitas artes antigas visitaram com lucidez esse mundo pitoresco que Hergé também nos oferece, como documento vivo e palpitante de coisas, pessoas e paisagens que faz do nosso mundo aquilo que ele é no quem tem de melhor e, às vezes, de menos bom. Limito-me a referir, muito de passagem a arte fabulosa das estampas japonesas e dos desenhos da Pérsia, da Índia, da China e de tantos outros mundos conhecidos e desconhecidos.
“Last but not the least”, não esqueçamos outros atributos inerentes à figura do ladino repórter que não tem que se maçar a escrever notícias. Sendo uma espécie de cavaleiro andante de causas bem intencionadas, está muito longe dos super-heróis que as histórias de quadradinhos produziram às toneladas. É baixito, tem uma fraquíssima figura, as miúdas não lhe ligam bóia e – embora seja praticamente invulnerável a toda a espécie de acidentes sérios – não se livra, de vez em quando, de levar umas boas tareias!… Valha-nos o mito para acreditarmos que há em nós o fermento da divindade e que, se for intenso o talento de sonhar, também podemos um dia ir por uma ribanceira abaixo e levantarmo-nos logo de seguida para lutar por uma causa desinteressada, seja ela a mais acidental. Quem não salva a alma com muito terá de salvá-la com pouco e a alegria infantil é um universo cheio de virtudes que todos deveríamos saber habitar, para proveito e consolo de toda a nossa humanidade.

texto e a ilustração foram publicados na Revista de informação do SBC, no número de Janeiro/Fevereiro de 2009.

A valiosa dedicação de Leonard Griffin e os azares calamitosos do quase extinto Zé povinho

Publicado no Diário de Coimbra de 4 de Fevereiro de 2009

O colapso eventual duma fábrica de produtos artísticos (as Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, de 1922, nas Caldas da Rainha) ocorre num momento conturbado mas, já antes, muitas unidades fabris da mesma área fecharam as suas portas deitando fora o potencial criativo que reuniam. Todos perdemos, todos continuamos a perder. A extinção da fábrica desde já, ou a prazo, atinge o ponto sensível das coisas simbolicamente caras que deveriam estar livres de tal destino e aos interessados activos caberá perguntarem-se qual é o motivo e a quem cabe a responsabilidade de tal derrocada de valores. Saber por exemplo o que tem feito a gestão de tais unidades no que toca ao estudo de novas abordagens da arte, na descoberta de novos produtos, no estudo de mercados e numa divulgação mais esclarecida da sua actividade. Uma certa visão do mundo vai sempre de mão dada com a essência de certos gestos criativos e, se não houver renovação de horizontes e consagração qualificada do que se fez no passado, as coisas morrem. Aqui entra a atitude das instituições mais ou menos académicas, mais ou menos escolares e institucionais no estarem atentas, no apoio dignificante daquilo que a sociedade produz de melhor. É sabido que o espírito conservador da cultura oficial tem preferência pelas coisas antigas e ultra-consagradas.  Cerâmica artística? Sim, mas só até ao século dezoito, se faz favor!… O passado recente é muito chato, o futuro a Deus pertence e o presente… ninguém quer comprometer-se com nada. A sociedade em geral também não está isenta de culpas, os apreciadores, os coleccionadores, os retraídos encomendantes e as demissionárias entidades públicas. Quando as coisas vêm abaixo, no instante em que as fábricas fecham, nota-se um ligeiro estremecimento, uma breve aragem gélida que perpassa. Mas tudo se aquieta logo depois na maior das calmas. As raparigas que foram pintoras de jarrões magníficos vão para a lida doméstica, as mais velhas passajam as calças de filhos e genros e os artistas activos abrem um precário cafézito lá na aldeia. Quais são as faculdades que estimulam os seus alunos a fazerem teses de licenciatura ou de mestrado a respeito de artistas vivos ou de unidades fabris ainda a laborar? Vade retro Satanás que isso é tudo da vida ainda viva e nós somos das coisas mortas, da matéria consagrada pelos séculos!… Termino esta conversa de hoje referindo sumariamente a atitude que considero exemplar do investigador e coleccionador Leonard Griffin, caso exemplar de alguém que abre caminhos na gloriosa tarefa de divulgar o que merece ser divulgado, fazendo-o de uma forma eficaz e duradoura. Não havendo aqui espaço para traçar um perfil adequado de toda a sua personalidade irei referir apenas a dedicação e o trabalho que colocou ao serviço da obra de uma ceramista inglesa, Clarice Cliff, que teve a dita de merecer a atenção estudiosa e militante deste destacado estudioso. Leonard Griffin é um cidadão inglês que veio residir para Portugal, em pleno distrito de Coimbra e que aqui vive encantado com a gente e as artes deste país. Fundou em 1982 o conhecido CCCC (Clarice Cliff Colectors Club), que produziu ao longo dos últimos 27 anos um ressurgir enérgico da imagem e do valor da citada artista, com coleccionadores espalhados por todo o mundo e cotações surpreendentemente elevadas. Se Clarice Cliff fosse portuguesa a sua obra estaria hoje enterrada debaixo do mais indecente anonimato.

Rafael Bordalo Pinheiro


A valiosa dedicação de Leonard Griffin e os azares calamitosos do quase extinto Zé povinho

Rafael Bordalo Pinheiro bem pode dar voltas na tumba do prestígio saudosista que envolve a sua palpitante obra de cidadão lúcido e artista inspirado. É num jazigo de palavras vãs que irá repousar a lembrança duma das suas invenções menores, a castiça figura do Zé povinho, permanentemente acintoso no gesto malcriado com quem ninguém se identifica porque é chato, cheira a bolor e… não vai a lado nenhum. A não ser nas páginas das teses de doutoramentos futuros, quando já não houver a mínima hipótese de ressuscitar o gesto criador de quem faz as coisas agora porque sabe e porque sente, que a sociedade deita para o lixo porque não quis descobrir nisso lucro imediato nem dar valor à dignidade cultural que de facto lhes corresponde.

Raf pen

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Fernão Mendes Pinto, filho de Montemor-o-Velho, contemporâneo de Camões que trabalhou degredado em obras na Muralha da China

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Uma nau portuguesa do Sec. XVII em Nagasaki, no Japão.

Uma nau portuguesa do Sec. XVII em Nagasaki, no Japão.

“… o galardão da nação portuguesa mais consiste & mais pende da aderência que do merecimento da pessoa”
pungente denúncia da rainha de Aarú da falta de cumprimento de promessas de auxílio feitas pelos portugueses face ao ataque de inimigos comuns;
Peregrinação, Cap. XXX

A leitura das obras clássicas de todas as épocas é de todo recomendável, garante uma ligação directa à perenidade universalista, além de ser fonte do mais intenso prazer intelectual.
A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que é um clássico no verdadeiro sentido do termo, é um relato apaixonante da odisseia dos portugueses pelo mundo, muito frequentemente citado, poucas vezes lido até ao fim e raramente analisado nas suas facetas mais importantes.
Obra contemporânea dos Lusíadas de Camões não ganhou para ser apresentada às majestades da época nem sequer editada em vida do seu autor. Este escreveu-a conscientemente despojado da categoria de escritor, num estilo humilde de quem narra coisas sabidas e vividas por ele próprio e por outros seus iguais, fora do tom grandiloquente da epopeia, esclarecendo que o seu único intento era de a deixar como herança de memória aos seus filhos.
Poderá ser lida com simples relato de viagens e tremendas aventuras, sendo lamentavelmente redutor enfatizar as questões ligadas à veracidade ou invenção das peripécias de assombro de que está repleta.
Tendo tido que conviver com os mais graves poderes da época, num cenário em que eram praticamente excluídas quaisquer hipóteses de estabilidade, segurança e conforto, Fernão Mendes Pinto conseguiu produzir uma obra que põe em causa a moralidade das conquistas ultramarinas e que coloca a missão dos portugueses de conquistar e converter ao nível de um ideal falso e corrupto.
A primeira publicação teve lugar apenas 31 anos depois da morte do autor, facto que não é alheio ao temor provocado pela Inquisição, a qual não deixou – bem como os Jesuítas – de terem intervenção censória na integridade do texto.
Dele foram rasurados aspectos menos “convenientes” de conteúdo e todas as alusões feitas por Fernão à citada ordem, de que foi aliás membro e colaborador activo na missão evangelizadora do Japão, na fase da sua vida em que estabeleceu estreito relacionamento de amizade com S. Francisco Xavier, a quem emprestou dinheiro para construir a primeira casa Jesuíta naquele país.
A notoriedade da Peregrinação a nível internacional logo depois de publicada foi imensa, tendo-se efectuado grande número de edições traduzidas em dezanove línguas, dado o seu acentuado universalismo que suscitou estudos e comentários dos mais diversos autores.
Fernão Mendes Pinto é tido como um homem muito à frente do seu tempo num variado leque de assuntos e, nomeadamente, no conceito que apresenta a respeito dos povos distantes, em tudo diferente da perspectiva paternalista e colonizadora que era timbre da atitude dos ocidentais em geral e dos agentes do cristianismo, em particular.
Aliás a sua presença no Oriente não se deve à posição social ou à proximidade de qualquer poder. Ele está ali por acidente da sorte, é um homem que se esforça por sobreviver a um destino frequentemente adverso e não tem, por isso, complexos de conquistador ou missionário.
Há portanto espaço no seu olhar para ver os habitantes longínquos com a tolerância e a compreensão de um seu igual e não se ocupa, como Camões o fez, em narrar a epopeia do grande Gama, herói descobridor, antes descreve em tom humanizado piratarias e acidentes perigosíssimos por que passaram anti-heróis como António de Faria.
Assim se compreende também, como nos diz J. David Pinto-Correia, no Colóquio Letras da FCG de Janeiro de 1984, serem escassas as manifestações que durante o ano de 1983 assinalaram o IV aniversário da morte do grande pícaro aventureiro que na oralidade da sua prosa se designava frequentemente como “o pobre de mim”.
Dado que a leitura directa e desacompanhada do original é susceptível de não abrir para um entendimento abrangente dos seus valores mais profundos, é aconselhável procurar estudos e comentários que os contextualizem.
Tenho aqui a meu lado um interessantíssimo “Fernão Mendes Pinto no Japão” de Wenceslau de Morais (da Imprensa Nacional Casa da Moeda) e recomendo também “Sátira e Anti-Cruzada na Peregrinação”, volume 57 da Biblioteca Breve do Instituto de Cultura e de Língua Portuguesa, de Rebecca Catz, considerada a maior especialista estrangeira em Fernão Mendes Pinto e que é possível descarregar na íntegra da internet.

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Um grupo de portugueses no Japão, no sec. XVII, ou “Nanban” (“bárbaros do Sul”, como eram chamados)

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Este texto foi publicado na Revista de Informação de Novº/Dezº de 2008 do SBC

Museu do Vinho da Bairrada, em Anadia, visita temática e exposições temporárias, a não perder

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prospecto do Museu do Vinho da Bairrada

prospecto do Museu do Vinho da Bairrada

Esta notícia foi publicada no Diário de Coimbra de 2 de Dezembro de 2008

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Se o leitor se interessa por motivos de natureza cultural e não está a pensar deslocar-se em breve a Anadia, acho melhor que mude imediatamente de ideias. O tão conhecido consumismo faz as pessoas viajar muitos quilómetros (se preciso for, de avião) não levando em conta coisas aqui tão perto e de tão grande valor. O Museu do Vinho da Bairrada é um centro cultural de elevado nível, dotado de arquitectura notável, espaços e infra-estruturas muitíssimo respeitáveis alojando, para além das visitas temáticas permanentes que propõe em conceito de modernidade e avanço tecnológico, um programa sustentado de valiosos acontecimentos temporários, três dos quais tenho o prazer de comentar hoje, muito resumidamente. De autoria de artistas originários da região da Bairrada, criativos que a si mesmo se intitulam “os Eugénios” (Fernando Jorge, Luís Gamelas, Luís Santiago, Augusto Formigo e Eugénio Moura Inês) temos as “Eugeniaturas”, 70 caricaturas de individualidades diversas, oriundas quase todas do âmbito nacional lisboeta, onde vivem e prosperam os raros portugueses que fazem e dizem coisas, que “aparecem” na televisão e que são, enfim, mediáticos. O modo como esta exposição está montada constitui uma obra por si só, pela originalidade de contextualização dos diversos grupos de trabalhos, à qual não falta a particularidade de duas caricaturas (oh, céus!…) penduradas num edifício lá fora, longe, as quais têm de ser vistas… de binóculo!… Tal excentricidade não peca por excesso, antes condiz com a inteligência criativa e sentido de humor em evidência, que é o que se procura transmitir.

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“To play for time”, 117 x 286 cm, óleo s/ tela, de Gustavo Fernandes

Passemos em seguida à exposição de pintura e fotografia que assinala os 25 anos de carreira de Gustavo Fernandes. O conjunto de obras expostas é de uma intensa maturidade técnica, afirmando uma filosofia muito particular do objectivo e do subjectivo. O primor das execuções e o seu encadeamento simbólico configuram uma visão mais que do tecnicista, psicanalítica. A terminologia vulgar ou as categorizações de escola ficam aquém do que é dado a ver. Nem o surrealismo, nem o hiper-realismo, nem a matriz fotográfica resolvem só por si esta problematização do sonho, ou do pesadelo, que nos deixa sós de olhos abertos sobre uma realidade interior, sem tempo. Há silêncios feitos de ausência, horizontes de infinitude, materiais sem alma aparente vistos à lupa, rostos que se nos escapam, o senhor do boné que procura algo que está fora do quadro e a criança que esconde o seu olhar do animal imenso que (não) está lá. Na série dedicada ao vinho, espécie de uma vitalidade mitologicamente meridional ou de velhas ritualidades do sagrado, os símbolos imediatos da sua presença aparecem cruzados com um corpo fraccionado de mulher equivocamente despida/vestida e sem rosto. O pintor sujeita-se ao tema mas não consegue alhear-se da sua visão própria, intensa, violenta (a palavra sai-me, não posso evitá-la).

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“Viajante do tempo”, 130 x 215 cm, mármore s/ metal de Rogério Timóteo

Rogério Timóteo é o artista que protagoniza a terceira das exposições temporárias, constituída por um conjunto de esculturas e desenhos. Nas primeiras apresenta o cruzamento de materiais fortemente contrastantes: o ferro e o mármore; o Norte e o Sul de uma geografia dos sentidos; a vulnerabilidade da carne frente a tudo aquilo que lhe é exterior; o sangue e a técnica; o grito humano de encontro à funcionalidade do mundo. A fragilidade e a audácia do corpo encontram-se metaforicamente em evidência como elos de uma cadeia de tensões, colocados no ponto crucial de expansões energéticas: o desejo do voo, a proa do navio, as soluções de continuidade entre colunas assimétricas, a dor e o sacrifício. Os desenhos distribuem-se por dois ciclos, um mais formalista outro mais tumultuoso, mas ambos bem articulados com as peças restantes. É especialmente bem escolhida a forma de acabamento e cobertura das obras com resina acrílica, o que confere uma vibração lumínica que complementa bem a sóbria austeridade da técnica de registo. Embora cada uma destas três exposições denote uma forte personalidade, é de acentuar que cada uma delas pode coexistir com as restantes, dadas as qualidades arquitectónicas dos espaços onde são inseridas e a forma como este foi administrado pela organização das mesmas.

Mário Branco expõe em Coimbra, no Museu Municipal, Edifício Chiado

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442 M Branco

Este comentário foi publicado no Diário de Coimbra de 30 de Setembro de 2008

Esteja atento o cidadão interessado e não desista de ver. Os mesmos artistas que desde há milénios procuram comunicar com o presente futuro das sensibilidades vivas permanecem activos, mau grado a fome aparente de verdade e de paixões autênticas. O fantasma das culturas burocráticas permanece e alimenta-se de espectáculo, mas aqueles que teimam encontrar, sempre acharão. Mário Branco mostra um belíssimo conjunto de obras de pintura na galeria de exposições temporárias do Museu Municipal, no Edifício Chiado, outrora centralidade única de centralidades agora repartidas e é uma presença que vem deliberadamente ao nosso encontro. Os trabalhos que nos mostra evidenciam bem uma metamorfose positiva das linguagens da contemporaneidade, neste caso coerentemente associada à corrente das artes próximas do homem e da sua essência comunicativa.
Nada de chapadas de tinta aleatoriamente garatujadas por cima de enormes telas, ou exercícios de neo-qualquer-coisa confiantes na perplexidade de contemplantes anulados pelo acetinado de “meios” que dispensam completamente a “mensagem”.
Mário Branco, pelo contrário, aborda sem complexos uma ampla diversidade de condimentos expressivos não fugindo à variedade de formatos que oscilam entre o delicadamente intimista e a alargada dimensão de alguns dos seus vórtices de impressionante efeito. As variadas caligrafias que põe em prática vão desde a administração mecanicista da matéria da pintura em escorrências, sobreposições e arrastamentos, etc., até à execução a pincel de “mimos” de expressão cuidada, sem receio de evidenciar amor e preceitos técnicos. As suas composições abrangem uma variedade de formatos sugestivos do “retrato” e da “paisagem” mas, na maioria dos casos, revelam estruturações impossíveis de designar por palavras. Como qualquer artista em liberdade não foge à diversidade. Se evidencia coerência plástica, porém, não nos reduz à monotonia de estar a ver sempre “o mesmo quadro”, apelando à decifração das fases construtivas e desafiando-nos a adivinhar o itinerário de gestos felizmente complementares. As suas massas cromáticas tanto se afirmam por empastamentos convictos ou cores firmes, como em lavados e transparências subtis, aqui e ali acentuados por tracejamentos a pastel ou carvão e projecções de tinta diluída que surgem onde é oportuno e não apenas “onde calha”. A paleta de cores assenta numa semântica serenamente nostálgica, embora sejam abundantes os pontos de exclamação, as acentuações e – em casos precisos – a surpresa de uma excepção. Visite exposições de pintura, caro leitor. Vale bem a pena e ensina os olhos a ver. Mas não vire o rosto para o lado à primeira impressão. Persista um pouco e tente mergulhar lentamente na arquitectura dos sinais. Assim se aprende a ler o pensamento e se lava a mente da pressa confusa das imagens sem alma.

Nota de remate:

Consequência das restrições cumulativas a cujo cerco o cidadão se vai habituando (e que pesam fatalmente pela negativa) o pequeno catálogo anteriormente oferecido equivale agora aproximadamente ao preço de quatro litros de gasolina. Sinal dos tempos em que o espavento das derrapagens dos biliões se tornou uma praga “paulatinamente” ignorada por motivos de “conformação”.
Mário Branco no Edifício Chiado, até 25 de Outubro de 2008.

O “Jardim da Água” nas Caldas da Rainha e a obra artística de Ferreira da Silva

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FS 01
painel de azulejos, IPO/Coimbra
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Quem primeiro me falou, já há alguns anos, acerca do artista Ferreira da Silva, foram os profissionais de azulejaria da região de Alcobaça, Porto de Mós e Caldas da Rainha. Trata-se de uma figura por todos conhecida, rodeando o seu nome uma aura de elevado respeito e consideração pela sua obra.
Um dia, o meu amigo Alcino Vala, do Juncal de Porto de Mós, que exerce o mesmo ofício que os azulejadores de fins do sec. XVIII que ali produziram, entre muitos outros, os painéis de azulejos que estão na sala dos Reis no Mosteiro de Alcobaça, levou-me propositadamente até ao Hotel da Quinta do Pinheiro, no Valado dos Frades, onde há um significativo conjunto de trabalhos de autoria de Ferreira da Silva, às quais novas encomendas se vieram juntar recentemente, numa louvável atitude de enriquecimento patrimonial daquela instituição.
Tive mais tarde a ocasião de publicar no Diário de Coimbra um comentário detalhado a respeito do notável conjunto de painéis seus que se encontram no IPO em Coimbra, quer à entrada, quer no seu interior.
Fora entretanto às Caldas da Rainha, para me encontrar com o Mestre, o que me deu a grata oportunidade de conhecer, além de outras intervenções suas de valiosa importância, o empreendimento público que ali desenvolve, com arrastadas intermitências, por iniciativa do Centro Hospitalar da cidade e que tem a designação de “Jardim da Água”.
É muito ingrato para mim falar num espaço tão reduzido a respeito do labor deste notabilíssimo artista detentor, além do mais, de uma personalidade forte e distanciada de toda a trivialidade, do exibicionismo fácil e da reverência conveniente.
O artista Ferreira da Silva é conhecido por um grande número de intelectuais e artistas do grande mundo, com os quais ombreou em talento e representação cultural. A personalidade que o caracteriza, contudo, fez dele um homem enraizado no labor oficinal que sempre tem desenvolvido com a maior eficácia criativa e infatigável persistência experimental. Detentor de uma cultura universalista, ecológica e poética, de grande independência, aprecia os espaços livres, o mundo das origens, os princípios e a liberdade inicial em clima que gosta de designar como “saudade do arqueo-sítio”.
São numerosas as obras que foi produzindo no domínio das artes do fogo, estando espalhadas pelo mundo uma grande quantidade delas, na posse de notáveis coleccionadores.

FS 02
O “Jardim da Água”, Caldas da Rainha

O Jardim da Água é um espaço cénico e um percurso pedonal que tira partido de um conjunto de materiais pré-existentes e de estruturas de encaminhamento de águas termais, aos quais se acrescentam multifacetados recursos de originalidade e um sentimento criativo sem peias.
É uma obra dominada por um empolgante sentimento de utopia, destinada a fornecer um permanente espectáculo de águas rumorejantes, circulando através de planos diversificados, animado dos mais diversos efeitos de cor e luz.
A estrutura geral de suporte associa à solidez do betão uma libérrima multiplicidade de planos com intenso dinamismo escultórico, sobre os quais a cerâmica, o vidro, o ferro e outros materiais ganham significados novos, amplificantes do seu usual valor.
Faço os mais sinceros votos para que as contradições que se adivinham por detrás da hesitante marcha dos acontecimentos não demorem a conclusão de uma iniciativa sem qualquer paralelo em meio urbano e de invulgar expressão estética, que tanto tem a ver com o legado histórico e cultural da cidade em que se encontra.

Este texto foi publicado na Revista de Informação do SBC, de Janeiro/Fevereiro de 2008

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Augusto Mota, o olhar do pensamento e a novidade do que é eterno

Desenho da autoria de Augusto Mota, de fim dos anos 60, para uma das muito conhecidas capas da Livraria Martins, de Leiria

Desenho da autoria de Augusto Mota, de fim dos anos 60, para uma das muito conhecidas capas da Livraria Martins, de Leiria

Este texto foi publicados na Revista de Informação do SBC, de Março/Abril de 2008


Um dos perfis que mais se destaca nas memórias que tenho da minha Leiria dos anos 50 e 60 é o do artista e cidadão Augusto Mota, pelo modelo de pensamento e pelo exemplo construtor de energias criativas que colocou ao meu alcance e de tantas outras pessoas da mesma geração. Licenciado em Filologia Germânica ensinava artes visuais na chamada Escola Industrial e Comercial. Essa aparente contradição sinalizava a abrangência de culturas e de capacidades diversas, numa síntese produtora de entusiasmo criativo e na concepção do maravilhoso da vida como contingência possível. Tive o privilégio de ler muito cedo o notabilíssimo trabalho de tese que fez sobre a obra de Aldous Huxley, numa idade em que o interesse pelo mundo e pela vida tinha consigo a tal crença inicial que acelera a chegada do futuro sem que o facilite, envolvendo-o – não obstante – pelo arco-íris de expectativas plenas de convicção. Desde a utopia franca duma obra como “A Ilha” às perspectivas impiedosas de um “Admirável Mundo Novo”, agora muito mais próximo de todos nós, senti-me impulsionado em direcção a um entendimento da vida e do mundo cujos limites não se esgotaram jamais. Tal como William Blake, cuja obra teve inicialmente como projecto de tese, também Augusto Mota evidencia uma abrangência de criatividades distintas, ao jeito das grandes fi guras do humanismo renascentista. Como criador plástico trouxe ao meio em que vive uma grande variedade de sugestões completamente novas, a partir do próprio conceito da condição social do artista como agente de transformações essenciais.

“O futuro não precisa de quadros: precisa de Cidades que os Homens possam habitar humanamente”, disse desde os seus começos, na propensão assumida de rejeitar as atitudes mais formalmente académicas, em benefício de oportunidades abertas ao alcance da maioria. A arte nos objectos e atitudes do quotidiano e na pesquisa sensata e elegante das melhores soluções para todos os problemas da sociedade. Figuras como Augusto Mota deveriam ser utilizadas mais amplamente pela nossa sociedade em seu próprio benefício. O poder e os seus interesses imediatistas têm dificuldade em entender tais valores, o que configura uma das piores tendências da sociedade em que vivemos: a exaltação da trivialidade e a legitimação do que é medíocre.

No último período da sua actividade como professor do ensino secundário (aparentemente, no nosso país só há professores no ensino secundário!…) provou os amargos frutos dum já antigo e hipocritamente escamoteado apodrecimento dos ambientes lectivos. Reformou-se dessa actividade em tempo próprio, mas não abandonou a procura de valores e o cultivo de formas específicas de intervenção cultural, de que continuo, felizmente, como espectador privilegiado. Sempre que olho a frescura de inspiração de tantas das suas obras invade-me um entusiasmo poético tão intenso como aquele em que as vi pela primeira vez. Inesquecível é, contudo, o políptico das “Tentações de Dona Urraca”, desenho a traço simples que perfeitamente sugere o universo da cor, pleno de ironia teatral e truculência ingénua que não assustam, antes inspiram quem as vê. Revelação de entidades misteriosamente familiares oriundas dum sonho sem idade, águas impolutas e frescas de um rio sereno sem margens.

Exposição Bibliográfica e Documental Luiz Pacheco, na Biblioteca Geral da UC, a não perder

 

LP 02

publicado no Diário de Coimbra de 16 de Março de 2008

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Da fachada da Biblioteca Geral pende uma faixa comprida, com a assinatura de Luiz Pacheco. “Eu não tenho imaginação”, é nela declarado pelo escritor, figura tornada fascinante devido à sua desordenada bizarria a que a sociedade conformada e silenciosa que todos nós construímos não tem deixado de prestar um significativo preito de atenção.
Valha-nos o facto saudável desta exposição não ser uma homenagem como tantas, tão pleonásticas, tão fatigantes. É, adequadamente para uma Biblioteca Geral universitária, um registo de presença de um autor problematizante e oblíquo ao conformismo. A presença na Internet e nos meios de comunicação a respeito do escritor, a que é inteiramente supérfluo chamar “polémico”, é muito abundante e elucidativa, embora os seus livros sejam raros nos escaparates.
A visita à BGUC recomenda-se, e que o visitante não vá com pressa. Que leve tempo para entrar pelas vitrinas com vagar de ler palavras sentidas, testemunhos directos e pungentes da vontade indómita e da palpitação acelerada dum coração inquieto.
Os intervenientes no colóquio que ali teve lugar para inauguração da mesma eram, além de estudiosos, pessoas estreitamente ligadas à pessoa e à obra do artista. Um deles, seu filho, falou não omitindo nem iludindo essa qualidade, mas declarando-se primordialmente como seu leitor e admirador. Todas as participações foram abundantemente elucidativas, mas a respeito de um outro Luiz Pacheco, diferente do que nos é apresentado como caricatura dele mesmo, ao arrepio da sua verdade essencial de escritor, crítico, editor e semeador de inquietações.
Afirmou o artista, portanto, que não tinha imaginação. Um dos participantes explicou, ao abordar a diferença essencial entre os “escritores da memória” e os “escritores da imaginação”, que isso se deveria ao facto de que a própria vida por ele vivida já era o bastante para satisfazer a sua vontade de intervir, o seu sentido de missão e de projecto, o seu peculiar sentido de liberdade.
“A imaginação é a minha vida”, dizia Pacheco, acrescentando noutra altura a respeito de si mesmo que “a minha escrita é o meu real”. Outra coisa disse também: “Não há escritores malditos, há é escritores mal escritos”. Os seus mais próximos conhecedores consideram-no não um marginal, mas um praticante de “uma escrita de estrutura eminentemente clássica, com delicadas subversões”.
No exercício da sua actividade de editor revelou sempre um cuidado meticuloso em todas as tarefas levadas a cabo, integralmente exigente na escolha das obras para publicação, todas elas dentro do critério da criação artística e nunca no da escrita de largo consumo.
Raul Leal, Natália Correia, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, Vergílio Ferreira, Mário Cesariny, entre outros, foram autores que publicou. Se o leitor tomar a decisão de visitar esta exposição, e acho muito bem que o faça, pode consultar antes a elucidativa documentação publicado sobre este acontecimento no site da BGUC, em: http://www.uc.pt/bguc/luizpacheco.

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A Galeria Sete, Ases & Trunfos em exposição e equipamento cultural em projecto

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Publicado no Diário de Coimbra

Foi publicada recentemente a emocionante notícia de que a Galeria Sete irá meter ombros à construção de um espaço cultural numa zona adjacente à Avenida Elísio de Moura, situada ao lado direito de quem sobe, no vale verdejante ainda com antigas terras de cultivo. Muito emocionante para mim, dado que resido nas imediações, e naturalmente emocionante para todos os que se interessam pela arte e pela cultura, onde quer que se encontrem. O facto de ser visitante regular da galeria, acompanhando por gosto o que ali se fez desde o seu início, permite-me concluir que o projecto já aprovado vai ser um passo em frente em termos gerais de cultura, não admirando que as artes plásticas ali venham a beneficiar de particular incidência.

Sem ser apreciador do cerimonial das inaugurações, deixo-me tentar por visitas mais tranquilas e contemplativas, sendo a exposição que ali se encontra neste momento – Ases & Trunfos – uma revisão abrangente de opções e personalidades estéticas especificamente interessantes, caso a caso. Passando pela montra somos literalmente “arrastados” para dentro da galeria pela tela de Francisco Relógio, artista já desaparecido que foi expoente dum talento raro, fortemente ligado às sensibilidades dum tempo e de uma cultura muito específicos.
Para além da frontalidade simbólica com que nos confronta, amadurece com os anos. Merece, por isso, um olhar lavado de preconceitos datados, devido às suas qualidades de expressão plástica que servirão noutros contextos, e sempre, como eco de um apelo intenso e luminoso, entre rosto e alma, entre terra e sol.
Ao lado, João Vieira está presente com uma das suas pesquisas de consagrado valor intelectual, massas complexas de cor arrastadas por compressão que configuram, mais do que ideogramas, fantasmagorias de teor semi-caligráfico, quase-máscaras ou quase-rostos monumentais.
De outros artistas representados permito-me referir, de memória, José de Guimarães, Pedro Poença e os trabalhos ainda presentes duma recente exposição individual de Noronha da Costa que a Galeria Sete organizou, como importante testemunho da sua evolução recente. José de Guimarães representa-se com um trabalho demonstrativo da sua prática de construir os elementos de suporte das obras que executa, muitas vezes situadas entre a pintura e a escultura, e que associam o mistério distante da complexidade ancestral às sínteses mais intensas da modernidade.
Pedro Proença, duma geração mais nova, evidencia em tudo o que faz uma prolífica veia criativa, quer do ponto de vista da construção imagética, sempre duma invenção caudalosa, quer mediante o uso da palavra escrita que, no caso presente, se encontra em evidência sobre o próprio corpo da pintura. Estão ainda presentes um número significativo de peças, todas claramente referenciáveis aos respectivos autores pelas suas qualidades expressivas, como um desenho de Vieira da Silva de 1945, particularmente intenso na simbologia do transe conflitual de que é testemunha; um guache de 1980 com a marca peculiar do gesto de Manuel Cargaleiro, cujo trajecto assinala uma forte presença na área da azulejaria; obras de Cruzeiro Seixas, Mário Botas, Mário Cesariny, entre outros.
A par destes exemplos, vários outros seria de acrescentar, de diferentes gerações de criadores e de diversas escolas de expressão, não havendo aqui possibilidade para isso, nem sendo meu propósito substituir-me à visita mais abrangente que o leitor irá procurar fazer, caso não o tenha feito já.

Caminhando pela baixa de Coimbra, com exposição de fotografias de Edgar Martins, no CAV

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Publicado no Diário de Coimbra de 27 de Fevereiro de 2008


A única coisa que a baixa de Coimbra não precisa é de que venha acrescentar-me ao número daqueles que tão lamentosamente debatem a sua decadência.
Só me ocorre dizer que, para além de todos os problemas que são ventilados por muitas outras pessoas muito melhor do que eu, a baixa também é uma questão de opção e de cidadania. Se quiser ir à baixa, vou.
Se a oferta de serviços, se os locais de convivência e de cultura, se os estabelecimentos com rosto humano me convierem, porque não na baixa? E é isso que faço, em dia de Sábado à tarde, a pé e levando comigo (além da melhor companhia…) aquele vagar que também inclui olhos para ver as coisas como se fosse pela primeira vez.
Depois de sair de Montarroio entramos no “Pátio”, damos a volta a um taipal de obras − das muitas que há por todo o lado ¬− e entramos no espaço do CAV, Centro de Artes Visuais.
A exposição que se mostra ao entrar é de fotografias de Edgar Martins, acontecimento que requer uma atenção e um vagar muito específicos, e proporciona um intenso prazer desde o primeiro instante.

numa tarde de luz tão ternamente atlântica

Compro o catálogo bilingue e cedo por momentos à tentação de mergulhar alternadamente na versão portuguesa e na inglesa, parecendo-me especialmente interessante o trabalho de tradução, facto que nem sempre ocorre em tais edições. A visita, contudo, obriga-me a deixar a leitura para depois. O modo como é feita a colocação dos títulos, embora não sendo de ignorar, é rapidamente abandonada, dada a evidente relação que os diversos ciclos de imagens mantêm entre si, quer por efeito de semelhança, quer por efeito de contraste.
Nesse sentido a organização da exposição é muitíssimo estimulante, porque permite ao visitante aperceber-se da coesão que as diversas séries sustentam em si mesmas, sem deixar de oferecer momentos de contraste e tensão, valendo a visita dos espaços não somente pelas peças isoladas como pelas confrontações respectivas.
Esta estratégia expositiva tem as suas excepções, das quais me atrevo a salientar o caso da última sala, em que a obra apresentada nos colhe com emocionada surpresa, dado o grau de familiaridade subjectiva (ou contraste plástico-simbólico), existente entre a matéria que nos dá a ver e a própria estrutura construtiva do espaço envolvente.
Para além do esplêndido apuro formal das obras apresentadas, que em certos casos restringe ao mínimo o conjunto de dados que são oferecidos à observação, existe como uma espécie de equívoco ou mistério na organização da paisagem que suscita uma análise dos mínimos sinais disponíveis, contendo cada um uma intensidade particular que reforça a coerência do todo.

uma multidão de gaivotas descansa sobre o artificial Mondego

A entrada surpreendida numa exposição de tão elevado teor de qualidade não é facilmente compatível com a apreensão imediata de todas as razões e conceitos que animam o labor do artista, para mais tão longamente fundamentados. Mas configuram uma oportunidade a não perder e, já agora, analisamos mais um pouco um dos fenómenos visuais em evidência. Largas superfícies de cor densa apresentam a espessura que nenhum fenómeno natural em si contém, a não ser no conceito abstracto da própria ausência. Um negrume tão intenso que, revelando aqui e ali sinais imprecisos, ou misteriosos, ou intensamente solitários, é essencialmente uma acentuação de tudo o mais que a vista alcança. Nuns casos apreciamos uma noite que não é, noutros um regato que se mostra como se fosse uma nuvem, noutros uma superfície líquida que se transforma noutro céu sobre o qual flutua a enorme massa de um iceberg escultórico, citação das tumultuosas paisagens glaciares de Caspar David Friedrich. As breves observações que aqui deixo a respeito da exposição de Edgar Martins não esgotam o muito que dela poderia dizer-se.
Durante a visita valeu a boa companhia que me levava para aquecer as salas arrefecidas de gente. E para entender melhor aquelas pequenas e grandes coisas que um olhar amigo vê mais esclarecidamente do que todas as palavras ditas.

caminhar é preciso

O espaço mais densamente frequentado que atravessámos no doce fim de tarde, foi o do parque da cidade. Chusma de automóveis no parque de estacionamento. Os mesmos que vão desandar dali para as grandes superfícies, poluindo tanto ao Sábado e ao Domingo como nos outros cinco dias. Os meus compatriotas têm uma grande dificuldade em andar a pé, e os transportes públicos ao Sábado e ao Domingo são ainda muito menos amigos que durante a semana. Vir a pé à baixa, Sábado à tarde, pode muito bem ser um sonho frustrante ou uma cansativa peregrinação. Mas temos a intenção de persistir nesse hábito. Embora nem tenhamos o colesterol alto.

Fernando Dôres expõe no Museu Municipal, Edifício Chiado

sem título, caneta e aguarela, 43,5 x 30,4 cm

Uma das coisas mais bonitas que a passagem de uma pessoa pelo miolo da cidade permite é não se estar a fazer conta com nada, entrar por uma porta aberta e, como por encanto, encontrar um acontecimento, uma personalidade, uma obra apreciável e o ensejo de falar de tudo isso.
A minha passagem pelo Chiado forneceu-me uma dessas oportunidades: uma exposição de Fernando Dôres, para ser mais preciso. Nota: não esquecer o chapelinho na letra “o” (que o meu computador se recusa a colocar) e bem assim o “p” na palavra “Metamorphoses”, pois é esse o título da mostra apresentada. O conjunto de obras representa uma acumulação extraordinária de meticulosas atitudes. Cada trabalho denuncia esse imenso vagar do espírito que permite, em cada passo que conduz à sua produção, concentrar totalidades diversas em que cada parte é destacável do todo sendo, não obstante, parte inalienável da síntese final. Isto é: o observador pode congeminar a marcha dos gestos do artista criador; decifrar apetitosamente como tudo pode ter-se passado, encontrando em cada jornada um infinito prazer de descoberta e revelação.
Não obstante, e como já foi dito, o resultado produzido nem por isso é menos uma unidade coerente e expressiva.

Figura e fundo, uma dualidade sempre em evidência

A sucessão de episódios construtivos da obra tem outra característica muito peculiar: cada um se filia numa forma de pesquisa com características próprias; operações entre si muito diversas na manipulação dos materiais e na variedade das técnicas. Casar tudo isso duma forma dinamicamente harmónica e sugestiva é o segredo do artista. A nós é deixado o ensejo de observar cada trabalho desde a sua génese até ao requinte do enquadramento de apresentação − mais que uma simples e substantiva moldura, quase sempre tratada como elemento adicional de surpresa. Começo por aludir ao primeiro dos elementos presentes na “descoberta” de cada obra: a fortíssima categorização das ideias de “figura” e de “fundo”. O céu, o chão, o horizonte ou a misteriosa distância a que se situa esse “fundo” é um exercício de subtilezas, baseado em grande número de trabalhos numa técnica da projecção de partículas de cores diversas. Simples, dirá o observador incauto; rigoroso e expressivo digo eu, pela justeza e sobriedade das categorizações conseguidas. O recorte e a colagem são outro dos episódios facilmente despistáveis do processo criativo, sendo apreciável a singeleza e o engenho colocado na pesquisa de cada elemento utilizado. A decifração da origem de cada fragmento é pitorescamente poética, e revela a adopção de “achados” que equivalem ao embuste teatral de tornar complexo o que é simples e à simulação mágica de tornar simples o que é complexo.

Atravessar a ponte que nos conduz ao país das metamorfoses

Os gestos do desenho reforçados por uma ideia subtilíssima da pintura são o argumento principal de que dispõe Fernando Dôres na área da invenção (ou da revelação dos sonhos…).
Personagens que se desdobram noutras, fisiologias complexas, órgãos simbióticos que placidamente se enfrentam, todos oriundos de horizontes de estranheza que, contudo, não assustam nem amedrontam quem os visite. Há qualquer coisa entre o pitoresco das fábulas e o absurdo dos mundos fantásticos nesta congeminação metamórfica de seres bem dispostos que convivem perfeitamente com a sua própria complexidade. Metamorfoses, sim, seja a palavra grafada com éfe ou ph, entendendo-se a utilização desta última forma pela carga de expectativas que sugere. “Metamorphoses”, sim, como ponte que atravessa para o país das visões problemáticas, oportunidade de fazermos as pazes com o universo das coisas estranhas e inquietantes que não conseguimos nomear.

A rádio paga por todos nós na divulgação da arte e da cultura

Ouvi esta manhã pela RDP 1, em noticiário nacional, que certa estrela de Hollywood vai inaugurar uma exposição de pintura de seu pai, em Lisboa. A notícia não era dada de modo avulso porque uma comentadora suplementar dava referências quanto à qualidade da pintura exposta, influências registadas, etc. Os pais dos artistas de Hollywood têm todo o direito de vir fazer digressões a Lisboa, à Europa, a todo o mundo, enfim. No entanto, as emissoras públicas de rádio (que somos obrigados a pagar junto com o recibo da luz eléctrica, quer as ouçamos ou não) e em geral a grande comunicação social sedeada na capital (que toda ela é paga por todos nós…) incluindo a Antena 2, deviam procurar dar-nos a ideia que entre a fronteira espanhola e o Oceano Atlântico há algo mais do que Lisboa, sua cultura, seus personagens e seus acontecimentos.
O que nem sempre acontece, com manifesto prejuízo para todo o país que somos, e não enobrece particularmente os próprios habitantes da enorme cidade, outrora chamada “de mármore e granito”.


Este texto foi publicado pelo Diário de Coimbra

Com tantas serranias por aí à boa vida, olha o que havia de calhar a esta Serra, tão única, tão espelho nosso, tão igual ao que sonhamos

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Aos lugares pertence a paisagem como pertencem a cada pessoa o rosto, a figura, o carácter. É por me olhar ao espelho todos os dias que posso dizer aquela frase simples, de auto reconhecimento fundamental:
– Olha, aquele sou eu!
Rosto, imagem, palco do teatro ambulatório que mostra ao mundo o espectáculo do que nos vai cá dentro. Os grandes acidentes e fenómenos da paisagem, tal como qualquer pequeno recanto habitado, têm na sua imagem algo que lhes confere personalidade, consoante a capacidade do nosso sentimento em reconhecê-los e valorizá-los.
O caso das serras é, dentre todos, de uma natureza muito distinta. Aquela formidável concentração de massa e energia vital dá às serras o carácter de coisas transcendentes, com identidade e potencial simbólico.
A nossa Serra, continente indizível de episódios vividos ou sonhados, é aquele vulto familiar que avistamos de longe ao chegar, com emoção; é sustentáculo de uma confiança ignota que fica ali de reserva para todo o sempre, se partimos.
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Uma fileira de pilares, bandarilhas de vulgaridade no dorso dum mito…

Foi com desgosto consternado que notei, há tempos, que a Serra estava a ser sacrificada
por uma enfiada desses novos, pragmáticos e nada quixotescos moinhos de fazer electricidade. À banda, rompe-se a cicatriz de uma imperiosa “linha de transporte de energia”. Não vou contestar a medida, nem discuti-la, nem perder tempo entristecendo-me com mais este abanão no património paisagístico. Estamos mentalizados por forças esmagadoras e infatigáveis a prescindir de tudo − do mais sagrado ao mais singelo − em nome de razões materialistas que uma atroz ideia de “economia” torna inevitáveis.
Uma Serra com seu imenso vulto sagrado transformado em dragão de carrossel de feira, com as escamas do dorso feitas candeeiros de loja de bric-à-brac; já não posso embrenhar-me por ela em sonhos, com medo de tropeçar num molho de kilovátios.
E o mesmo sucederá às bruxas, aos lobisomens, às aves do paraíso, às fadas madrinhas e aos duendes!…
É mais uma razão pragmática, económico-financeira, a ganhar espaço ao sonho, aos valores imaginários, à alma das coisas. Por toda a Europa se instalam centrais eólicas como esta. Como são escolhidos os sítios, não sei. Do que leio e vejo nas notícias uma coisa é frequente: nos locais onde a paisagem é considerada um património significativo para as populações, são muito activos os movimentos cívicos que clamam em sua defesa. São formados para aquelas pessoas que têm respeito pela imagem do seu rosto, e que se reconhecem nas paisagens da sua terra como se se olhassem ao espelho!…

Este texto foi publicado no “Trevim”, na sua edição de 19 de Abril de 2007, e as fotos aqui publicadas foram tiradas antes do mau passo…

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semanário Trevim, "uma voz nova para uma Lousã renovada"

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Esta notícia fica aqui apenas como lembrança de um momento


Tenho o prazer de anunciar aos meus visitantes que se reforça a antiga amizade que me liga ao semanário Trevim, da Lousã, localidade onde também resido, mediante o aparecimento de crónicas breves com temas genéricos sob a designação de “bicas curtas”.

O “Trevim” toma o seu nome a partir do topónimo do cume mais elevado da Serra da Lousã e é um periódico muito conhecido e prestigiado da imprensa local, cuja publicação vai comemorar o seu quadragésimo aniversário no corrente ano, dado que começou a ser dado à estampa a 1 de Outubro de 1967.

Os painéis de azulejos da estação do caminho de ferro da Lousã, o que esteve antes e o que estará depois

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Uma visita feita à estação de caminho de ferro da Lousã diz muito mais ao cidadão atento aos valores do património no seu sentido lato do que ao artista cativado pela ideia de uns simpáticos painéis de azulejos.
Os 100 anos comemorados acentuam a noção de que nos encontramos perante um património objectiva e subjectivamente valiosíssimo, da época fantástica da expansão da ferrovia.

A totalidade do espaço ocupado pela estação, remetido à época que a viu nascer, revela amplidão de horizontes e de fé no futuro, os quais poderão certamente associar-se à melhor tradição do espírito produtivo da Lousã.

Oxalá que um tal conjunto possa ser mantido em todos os elementos que o caracterizam, se possível restaurados nos aspectos em que começa a tornar-se mais notória a sua degradação: além do mais, o “cais coberto”, exemplo que se torna raro dos edifícios de trabalho que tão numerosamente têm sido destruídos em Portugal, com o gabarito respectivo, a balança e um guindaste de operação manual, portentoso vestígio de arqueologia industrial, magnífico na singela inutilidade a que as modernas tecnologias o remeteram.

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O cais coberto – como provo o presente-futuro desta notícia – desapareceu, como “por desencanto”.

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Onde terá ido parar o precioso guindaste?

Sobre os azulejos

Os azulejos que se encontram na estação da Lousã, eles também carentes de cuidados de restauro, não são propriamente “painéis de azulejos” no sentido mais enobrecido que se dá ao termo.
As cercaduras, construídas com azulejos de série, nada têm a ver com o motivo central, não são do mesmo estilo nem da mesma técnica, sendo notório o facto de não serem das mesmas dimensões entre si, o que obrigou a pequenas manobras de aplicação, especialmente visíveis nos dois conjuntos centrais. Tais cercaduras, formadas por um encadeado singelamente decorativo de flores e folhas, são encimadas por medalhões que pouca qualidade acrescentam ao conjunto.
As três placas de azulejos que mostram a palavra Lousã, ao centro e nas paredes laterais da gare, têm cercaduras com o mesmo padrão, mas em azulejos visivelmente mais recentes, de vidrado liso e já não relevados como os das cercaduras restantes.
Os motivos centrais, ao gosto de ilustrações da época ou bilhetes postais, não se encontram datados nem assinados por Jorge Colaço, contendo a indicação, isso sim, de que foram produzidos nas “oficinas de Jorge Colaço – Cª das Fªs. Cª Luzitânia”, o que é diferente, como a sua execução amplamente denuncia.

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Se os interessados visitarem por exemplo a estação de S. Bento no Porto, decorada com os seus espampanantes vinte mil azulejos historiados, assinados pelo artista, ou os painéis do Grande Hotel do Buçaco, do mesmo autor, e fizerem a comparação com estes da estação da CP da Lousã, saberão perfeitamente de que é que estou a falar.
Termino fazendo referência a um objecto clássico em todas estações da CP: o indispensável relógio de Paul Gaultier, neste caso ausente por nunca ali ter estado, ou por ter sido removido.
Oxalá fosse esse o único elo em falta na cadeia de expectativas da velha linha de caminho de ferro, cuja estação de chegada é como as horas dadas por relógios ausentes, de mostradores com números muito avultados, mas sem ponteiros que esqueceram o que foi o antes e ainda não sabem o que será depois.

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Este texto foi publicado no semanário “Trevim” de 14 de Dezembro de 2006, no suplemento comemorativo do centenário do Ramal da Lousã (ainda circulava o comboio na linha que entretanto se esfumou, no fundo de um bolso qualquer…)

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Esta fotografia desértica fica aqui, imprecisa e desfocada, como um sonho ou lembrança do passado…

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Eureka, uma visita para crianças ao mundo da Física, com música e fantasia

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A peça comentada, que não tinha um folheto de luxo com ilustração própria, permite-me mostrar em sua substituição esta belíssima obra de Almada Negreiros, que vi exposta na Fundação Calouste Gulbenkian em 1984. É um óleo s/ tela (80 x 65) “Retrato Clássico de Arlequim” de 1941.

Publicado no Diário de Coimbra de 3 de Março de 2006

Largas dezenas de actuações e quase três mil espectadores depois, inicia agora um périplo diversificado a peça “Eureka, uma viagem ao mundo da Física” da Associação Cultural “Encerrado para Obras”.
Esteve no Museu da Física, fez parte das comemorações do Ano Internacional daquele ramo da Ciência e teve consultores universitários que para a mesma forneceram sugestões e deram pareceres válidos.
Por ter um enredo tecido sem palavras e por conseguir manter atenta a sua assistência, geralmente infantil, durante praticamente uma hora, o comentário a seu respeito – que não é fácil – terá que ser, pelo menos, diferente.
Se a dificuldade do trabalho é óbvia pela eternidade que quase sessenta minutos representam para a solidão do único artista em palco, imagine o leitor a dedicação, o generoso interesse e a variedade de recursos expressivos que foi preciso pôr em marcha para fazer surgir do nada uma tal peça, ainda por cima sujeita a um tema tão difícil como o de revelar e tornar atraentes leis e fenómenos do mundo da Física.
David Cruz e Estela Lopes, com apoio de larga equipa de outros sonhadores, lançaram mãos à obra de investigar os mil e um processos simples e sugestivos que poderiam desaguar nesse mar de fronteiras desconhecidas que é o da imaginação liberta e palpitante de uma criança, tão aberto e, contudo, tão vário e tão difícil de navegar com rumo certo.
Contrariamente à generalidade das peças de teatro que têm um texto, uma história e respectivas personagens como esqueleto do que vai ser vivido pelo espectador, neste caso foi preciso descobrir tudo. Esse tudo não foi apenas conceber e construir todos os apetrechos, mecanismos e engenhocas que, meio utensílios de saltimbanco, meio engenharia de efeitos especiais, foram dando corpo ao universo de artifícios que preenchem o espectáculo.
O recinto onde decorre o mesmo é tornado arena de circo, terreiro de acrobacias, plataforma de ilusionista, rampa de lançamento de luzes e objectos voadores, palco musical ou várias outras coisas de que me não lembro já!…
David faz isso com vocação de artista criador, com veia musical e com leveza de acrobata (que chega a correr alguns perigos…) mas, sobretudo, com o sentido de invenção que só uma enorme ternura e uma larga memória do universo dos espectáculos singelos podem justificar.

Uma passagem breve para o paraíso da infância

Há outra coisa muito importante na delicada atitude romântica que anima toda a sua actuação: numa época saturada de espectacularidades vividas em recintos enormes e recheados de artifício, David viaja para o mundo misterioso da Física levando os seus espectadores, por assim dizer, pela mão, tratando com eles à distância de um gesto, de um passe de bola ou de uma carícia.
Os adolescentes resistem mais ao convite que uma tal mensagem comporta. A sua mente começa a estar na dependência do choque de sofisticações que só a “high-tech” prodigaliza na esquizofrénica abundância dos “megabytes” ou no ribombar ensurdecedor dos “megawatts”.
É por isso que é importante que este espectáculo seja visto por muitas crianças, aquelas cuja mente está ainda a tempo de poder assimilar esse gesto simples e ingénuo que pode ter estado ao longo de séculos ao serviço da curiosa surpresa que anima a alma ao mesmo tempo que a comove.
Um sorriso simples e franco que não necessita para se enternecer que o sangue corra, ou um olhar de inusitado espanto que se desata sem ter de ouvir com medo, ao longe, o ribombar dos canhões.
Aos adultos que tenham a oportunidade feliz de assistir à peça, sugiro por todas as razões que o façam, não só pelas qualidades acima enunciadas, mas também por ser um reencontro, uma viagem no tempo, uma passagem breve para o paraíso da infância.

Uma imagem e muito menos que mil palavras…

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A publicação destas crónicas tem tentado preencher uma certa escassez de opinião no domínio das artes plásticas, chamando a atenção para uma área de interesses que é geralmente remetida para uma zona muito pouco iluminada do espectro da comunicação social.

A ilustração deste “post” reproduz um trabalho de minha autoria, e é uma pequena “gratificação visual” para aqueles que tiverem a gentileza de aqui entrar.

O Passado ao Espelho, máquinas e imagens das vésperas e primórdios da Photographia

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097 Pvista parcial do desdobrável que apresenta o Museu da Física (Universidade de Coimbra)

Publicado no Diário de Coimbra de 25 de Janeiro de 2006

No Museu da Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra tem estado patente ao público uma excelente exposição assim inspiradamente designada por Alexandre Ramires, com toda a experiência e conhecimento que lhe são reconhecidos no domínio da história da fotografia e da utilização das imagens.
Traz-nos documentos de preciosa e pitoresca referência ao imenso dealbar da photographia, perdão, da fotografia, e que estimulam a apreciação do novo relacionamento com as imagens que a nossa civilização tem empreendido.
No painel de entrada encontra-se a ampliação dum daguerreótipo executado há mais de 150 anos com uma visão de Santa Clara tal como era naquela remota primeira metade do século XIX.
Chamei-lhe não “um documento” ou “um aspecto”, mas “uma visão” de Santa Clara. É que entre o objecto histórico que trouxe a imagem até aos nossos dias e a sua ampliação a uma escala impensável para os seus contemporâneos, interpôs-se o processo inteligente da sua “escolha” como referencial, autêntica “figura de convite”, preâmbulo ou desafio de quem entrasse para ver.
Por acasos técnicos inerentes à sua antiguidade, uma espécie de cortina ondulante avança sobre a larga paisagem do lado esquerdo e há zonas de erosão em seu redor que lançam sobre o conjunto uma inquietante sensação de mutabilidade. Uma mais demorada reflexão permite pensar numa abertura para a indeterminação ou interferência da subjectividade…
O que significa que tudo o que a exposição documenta, acrescentado por tudo aquilo que entretanto se passou e abre para um futuro sem margens, resulta sempre da qualidade das opções que são feitas, perante cada caso concreto, dos meios que surgem ao nosso alcance.
Alexandre Ramires, ao ter escolhido aquela “photographia” e não outra, efectuou uma escolha para dar ideias, não apenas sobre a resultante de certos descobrimentos surpreendentes, mas do uso da visão para construir uma imagem de nós próprios na envolvente do mundo que nos cerca.

Almeida Garret, em pessoa!…

Entre daguerreótipos presentes há um que retrata Almeida Garret.
Confesso que sempre achei ingénuas e decepcionantes algumas das configurações idealizadas da figura deste expoente das nossas letras.
O invento de Daguerre fornece, apesar da sua antiguidade, resultados surpreendentemente eficazes de veracidade, como comprovam certas ampliações que delas é possível efectuar.
Olhar para Almeida Garret com toda a calidez dum rosto enigmático, mas fortemente expressivo, produziu-me uma emoção estranha e indescritível. A mesma que, ao tempo em que o invento ocorreu, assustou tanta e tanta gente que preferia não olhar essas estranhas imagens que, dir-se-ia, transportavam no brilho do olhar a própria vivacidade da alma.
Para além dos documentos que comprovam a celeridade com que a Universidade de Coimbra (única ao tempo em todo o nosso território) reconheceu e divulgou as novas descobertas, a mostra efectua uma contextualização cultural atendendo a antecedentes e consequentes, algo sugestivo do que se chama a “adesão às novas tecnologias”, variante da abertura a tudo o que é novo, mas sabendo escolher entre o que é interessante e produtivo e o que é supérfluo ou de falso efeito.

O lixo visual e o aviltamento dos imaginários

Depois do encontro com a lanterna mágica, com o microscópio de projecção, com as câmaras e vistas ópticas, a estereoscopia, a câmara obscura e a câmara lúcida; depois de aflorar o universo de certas palavras mágicas, os calótipos e papéis salgados, o colódio e as albuminas, as “mouse trap” de Fox Talbot; depois de rememorar nomes de insignes agentes de cultura – alguns injustamente esquecidos – como Antonino Vidal, Joaquim Augusto Simões de Carvalho, Joaquim Possidónio Narciso da Silva, o visitante será impelido a questionar a abundância sem limites de imagens nos dias de hoje e as opções a fazer perante a oferta devastadora que tem ao seu alcance.
Será que conseguimos fugir de forma eficaz à trivialização da imagem do mundo, evitando o empobrecimento ou até aviltamento do nosso próprio imaginário?
Saio da exposição já tarde escura, entro num luxuoso (mas atrasado) autocarro munido de écran que despeja imagens promocionais surtidas de “spas”, “health resorts” e “trainning centers” por sobre uma multidão sisuda de cidadãos ansiosos de chegar algures.
Passo ainda pela fachada da catedral futebolística da cidade, agora com a sua “óvnica” arquitectura cada vez mais submersa por estridentes painéis publicitários com centenas de metros quadrados de imagens sem nexo ou cabimento estético-urbanístico.
Recordo o que me disse Alexandre Ramires a respeito da preservação da memória e da invasão, sem lei nem gosto, do lixo visual.
Oh, como adoece o horizonte entre bosques queimados e anúncios de coisas vãs!…
Oh, que falta sinto de um cidade capaz de acolher hospitaleiramente o meu olhar, sem a buzina esquizofrénica das coisas que não preciso e a beleza artificial dos estereótipos sem alma!…

Acabar muito bem o ano sem ter de ir a um “réveillon”

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087 p Trabalhos de Betty Woodman presentes na exposição no MNA, “Vista de uma janela no Verão”, jarras divididas, faiança vidrada, resinas epóxidas, laca e tinta; 103x98x26 cm

publicado no Diário de Coimbra no dia 9 de Janeiro de 2006

Julgo que uma das tarefas mais difíceis para o cidadão dos dias de hoje é a de procurar libertar-se das fatalidades mercantilistas e mediáticas que nos “oferece” a sociedade.
Inicialmente destinadas a tornar fácil, aprazível e, se possível, requintada “a qualidade de vida”, certas encenações parecem-me, cada vez mais, rituais monótonos e completamente anestésicos da consciência activa, seja o que for que assim procure designar-se, com a única virtude aparente de constituírem “bons negócios”.
O Natal e o fim de ano são um período ideal para exercitar o direito, ou melhor, o privilégio, de “fazer outra coisa”, de “não ir por ali”, não tendo de nos sentirmos frustrados por não haver absolutamente nada que comemorar.

Sintra, para ver algumas coisas raras

Sintra está visto. Mas muitos do que falam assim nunca foram ao Parque de Monserrate, passeando calmamente através da humidade preciosa que alimenta fetos, cascatas, árvores assombrosas e o antiquíssimo relvado, de forma a estarmos ali como num cenário de outro mundo. O palácio em si, contrariamente ao que nos afirmam folhetos e oficiais de turismo aparentemente muito conhecedores, não é visitável. Mas esse é apenas um de não poucos disparates a que terá de habituar-se o visitante do nosso património artístico e cultural.
Poucos metros à frente, a Quinta da Regaleira, em cenário fantasioso oferece a ressonância dúbia de secretas e ocultas mitologias, essas nada menos que exóticas.
No Sintra Museu de Arte Moderna (por quanto tempo ainda museu, e por quanto tempo ainda de arte moderna?) encontra-se uma magnífica exposição (Fernando Lemos e o Surrealismo) que efectua o cruzamento muitíssimo bem documentado da obra daquele grande artista com um conjunto riquíssimo de obras do referido movimento que pertencem à colecção Berardo. Apoiada por um excelente catálogo de preço moderado, proporciona uma longa e proveitosa visita, através não apenas de salas espaçosas e abundantemente preenchidas, mas também de uma época e de um tempo cujas implicações e potencialidades culturais e estéticas se encontram bem longe de estar prontas para a ultrapassagem da indiferença ou para a heresia da insensibilidade. Para ver até 30 de Abril.

A planície de Setúbal e os seus inesgotáveis horizontes

E a península de Setúbal, também está visto? Por mais que se regresse e sempre que se explore, concluir-se-á o contrário.
À Quinta da Bacalhôa, em Vila Fresca de Azeitão, acontece um pouco o mesmo que ao Palácio de Monserrate. Está tudo muito bem explicado num folhetozinho raro, que é preciso marcar visita com 24 horas de antecedência, mas se não fosse a gentileza tolerante de quem toma conta, bem tínhamos dado com o nariz na porta. Valeu-nos na canseira de andar à procura da visita um restaurante mesmo ao lado que não deixa ficar por mãos alheias a hospitalidade gastronómica dos povos da região, o belo vinho e a simpatia do acolhimento.
Do cimo do castelo de Palmela vê-se quase todo o mundo, incluindo terra, mar e céu. E também se vê Setúbal, que é para lá que vamos deixando atrás uma riqueza imensa de monumentos, igrejas preciosas recheadas de painéis de azulejos, paredes de branco ancoradas na terra plana do que já é, sem equívocos, terra alentejana.
Numa casa minha conhecida, o antigo edifício do Banco de Portugal, espera-me outro momento de entusiástico requinte: a exposição “Descobrir o Japão, de S. Francisco Xavier a Wenceslau de Morais” contém, além de outras coisas, um conjunto de estampas japonesas da colecção de Manuel Duarte Paias, apresentado como “o armário milagroso” de Wenceslau.
Tais gravuras (Ukiyo-e, expressão japonesa que significa “imagens do mundo flutuante”) terão, segundo alguns, origens numa visão budista da vida, e são certamente imagens do mundo que passa ou cenas da vida corrente em visão mais vulgarizada.
O que lhes não falta contudo é uma inenarrável beleza, manifesto inesgotável e transbordante da observação penetrante e sublime duma cultura distante e distinta, saturado duma aplicação ao trabalho estético que empolga e inspira. Mostra patente até 28 de Janeiro.

O Museu do Azulejo, mais uma vez, porque não cansa

Os azulejos reflectem, à nossa medida e de acordo com o sentido criador da nossa sociedade, imagens dum certo nosso “mundo flutuante”, com tudo o que a expressão possa carrear consigo de leveza poética. Não tão estrenuamente disciplinada, tantas vezes decadente e até vilipendiada, é essa a nossa versão das coisas e não adianta chorar.
Para além dos trabalhos de história, conservação e restauro já patentes em Lisboa na Igreja da Madre de Deus, muito bem documentados num livro que podia comprar-se em Dezembro com desconto especial, no Museu é possível ver-se ainda até 2 de Abril uma excelente exposição da artista americana Betty Woodman que, por si só, mereceria uma outra crónica por inteiro.
A mostra, muito poderosamente patrocinada, parece-me no entanto sofrer do mal de muitas coisas belas e excelentes que existem neste nosso precioso rectângulo: muito se fala da parra seca e muito pouco se diz da uva sumarenta.
É por essas e por outras que eu passei o ano em boa companhia, comentando com regalo a leveza poética do “Cirque du Soleil” que deu no segundo canal, evitando a selecta carraspana dum qualquer caro “réveillon” de requintes duvidosos e vinho espumoso fora do prazo de validade, já para não falar na miserável programação televisiva dos solitários, dos pobres e dos esquecidos que só vêem os canais da “grande” audiência político-futebolística.

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capa da exposição referida, AERSET – Edif B. de Portugal, Setúbal

O CAPC, as árvores da Sereia, seu movimento, instabilidade e conflito

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publicado no Diário de Coimbra no dia 12 de Dezembro de 2005


As minhas visitas à Casa Municipal da Cultura são geralmente complementadas com uma descida das escadas que, pelas traseiras, conduzem à sede do CAPC, instituição cuja acção pertence à memória da cidade de forma indelével mas cuja presença aparece persistentemente nimbada por uma inexplicável cortina de alheamento.
Não faz parte do intuito que anima estas “conversas” o propósito (ou a menor possibilidade) de registar de forma ainda que sumária a importância histórica do CAPC.
Se forem observados os percursos curriculares de uma notável quantidade de artistas de respeitável projecção, é seguro terem registado uma presença nas galerias do CAPC, havendo ainda uma inteira geração de artistas que passaram por Coimbra cuja aprendizagem oficinal teve lugar naquela que foi uma academia aberta aos mais variados horizontes da criatividade e do interesse pelas artes plásticas.

Túlia Saldanha, uma presença inesquecível

No dealbar dos anos setenta, quando cheguei a Coimbra, o CAPC era ainda procurado por interessados praticantes que aqui vinham propositadamente frequentar os seus ateliers, sendo dignificante em futuras carreiras artísticas a menção desse facto nos curricula respectivos.
Datam dessa década e da seguinte as visitas que ali fui fazendo, sendo para mim do maior significado a excelente convivência artística e cultural que pude travar nas antigas dependências da Rua Castro Matoso com artistas como Túlia Saldanha e Inês Paulino, para citar apenas dois nomes distintos.
O período seguinte foi caracterizado por convulsões e acontecimentos do mais variado teor que evidenciaram o Círculo como centro de realizações, debates, encontros, participações activas, sessões de divulgação, confronto de atitudes, etc.
As mudanças registadas, no percurso das quais o infausto desaparecimento de Túlia Saldanha não deixou de ser um notável ponto de viragem, associaram-se ao montante geral de transformações da própria sociedade, apagando de forma duradoura aquilo que fora e não mais voltou a ser.
Até aí ligado ao convívio artístico e à aprendizagem e divulgação oficinal das artes com carácter plural e de acentuada modernidade, o CAPC situou-se a partir de então no horizonte da “emergência” da arte contemporânea, numa tendência conceptual que acentuou a “desmaterialização” da arte e o isolamento progressivo da instituição, tendo alguns dos seus mentores mais avançados – o que não deixa de ser curioso – liderado a eclosão do que hoje é um importante núcleo universitário privado do ensino de Belas Artes.
A presença do CAPC na agenda de acontecimentos da cidade tem sido regular e coerente, o novo espaço que lhe foi há anos confiado pela autarquia é de concepção arquitectonicamente qualificada, dispõe duma interessante biblioteca, um raro escaparate de publicações sobre arte e as realizações que ali são levadas a cabo evidenciam um inequívoco aprumo de forma, com elementos de apoio e documentação da maior qualidade gráfica.
O conjunto de tais razões não permite, pois, que nenhuma pessoa interessada pelo fenómeno artístico possa ignorar o CAPC, sendo para mim desconfortável registar uma elevada taxa de desconhecimento sempre e cada vez que menciono o historial e a actividade do mesmo a pessoas do clima coimbrão.

A exposição de Gabriela Albergaria, “mouvement instability conflito”

A exposição que decorre ainda é ensejo para uma visita que deverá ser muito atenta e abundantemente apoiada na leitura dos materiais de apoio fornecidos.
Todo o vasto percurso da artista e o elenco de intencionalidades veiculado pelos dois projectos “site specific” no Jardim da Sereia escaparão ao visitante casual que se arrisca a conceber como nuclear a ideia de “exposição de desenhos e fotografias”, com tudo o que a mesma transmite, aliás, com invulgar sentido de qualidade estético-decorativa.
Será porventura nessa disfunção ou afastamento entre a volumetria do que é proposto e o conteúdo real do que é mostrado que haveremos de situar algum desentendido alheamento dos públicos relativamente a esta como a outras realizações do CAPC, geralmente afectadas pela dificuldade de leitura que nos oferece a arte contemporânea, no contexto de características próprias já anteriormente abordado nesta coluna.
A esta realização não falta porém, desta vez, um elucidativo texto (da autoria de Mark Gisbourne) que nem é exageradamente conceptual ou de gongórica redacção (o que é frequente em acontecimentos de arte contemporânea) nem carece de abertura perante duras realidades (o que é raro nesse mesmo contexto), neste caso, da tragédia dos fogos em Portugal.
Por parte da obra aqui apresentada pela autora não se torna explícito esse nível de preocupações, assinalando o texto referido um intencionado minimalismo deliberadamente afastado de propósitos didácticos, outra marca da contemporaneidade, “sem qualquer ensinamento ou pregação em relação aos danos que presentemente provocamos na natureza”.
Mark Gisbourne prossegue esclarecendo que “…as pessoas não são forçadas a ouvir mas são levadas a pensar…” e eu limito-me a fazer votos de que assim seja, já não digo em proveito de todas as florestas portuguesas, mas pelo menos para bem duma insulada e decadente zona verde chamada Jardim da Sereia, de tão lindo nome e de tão desvalorizada utilidade urbana, tão ameaçada pelo desleixo da incultura como pelos vendavais do nosso descontentamento.

Uma visita à Figueira da Foz, através das verdes planícies de antes do mar

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publicado no Diário de Coimbra no dia 4 de Dezembro de 2005

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Não é a primeira vez que me refiro a iniciativas que têm lugar na Figueira da Foz, em Cantanhede e até em Aveiro, tendo recolhido nota do interesse e da curiosidade de bom número de leitores. Encontro-me aliás em falta com o comentário de duas realizações notáveis ao alcance de poucos Km. Refiro-me à exposição “A nova vida das Imagens” patente no antigo edifício do Banco de Portugal em Leiria e à recentemente instalada e muito valiosa colecção de José-Augusto França, em Tomar.
O aproveitamento de tais horizontes poderia estar organizado pelas próprias instituições, municipais ou de outra natureza, mas a “falta de meios” (ou coisa que os valha) e o acentuado espírito paroquial erguem cortinas pesadas onde poderia haver janelas bem abertas. Quanto às agências de viagem e ao turismo organizado, isso é para destinos mais “exóticos”, naturalmente.

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A elegância fenecente do Paço de Maiorca

Viajando na estrada velha por aquela recta das pontes em arco que às vezes se enche de água de um lado e de outro, acabo por descobrir em Maiorca uma pequena praça ornada de velhos candeeiros de ferro pintados de verde como os que havia por todas as cidades quando eu era pequeno. De um dos lados ergue-se com imensa dignidade e elegância o Paço de Maiorca, que um site na Internet me havia garantido ser visitável, com preços de entrada, horários e tudo.
Mas qual quê! O monumento está para ali à sombra das memórias do seu passado glorioso, encerrando em segredo tesouros de notável valor patrimonial (painéis de azulejos, papéis chineses pintados “et alia”) revelando, detrás dos muros, jardins interiores entregues ao descuido espontâneo da natureza.
Há bem poucos anos frequentado por distintas personagens dignas de história e detentoras de fortuna, encontra-se agora pendente das indeterminações inexplicáveis dum país ensarilhado por “deficits” abissais, que poupa tanto no farelo que se dá ao luxo de estragar na farinha!

O artista Filinto Viana junto de um trabalho seu

O artista Filinto Viana junto de um trabalho seu

Filinto Viana, um artista sem atelier

Já na Figueira da Foz encontro o meu amigo Filinto Viana, digníssimo artista e pintor profissional a braços com o problema temporário, que terá de resolver por si mesmo, de não dispor de atelier. Os artistas são como os palácios de secreta memória, penso eu, abandonados à sorte do seu labor, sem contar com providências porque não há donde elas venham.
Como é que uma sociedade se permite ao luxo de ter um artista destes sem o recurso elementar dum local para produzir o seu trabalho? Pelos vistos muito bem, exactamente da mesma forma que negligencia o seu património e o deixa mergulhar na óbito da inutilidade.

A galeria “O Rastro”

Passo com Filinto pela galeria de Beja da Silva, onde esperam o visitante uma enorme quantidade de obras espalhadas por três pisos, que tive o privilégio de visitar contando com a companhia e com a cumplicidade do artista que sabe ver, que sente a pintura como um fenómeno tão natural como a sua própria respiração e com quem troco considerandos sensibilizados e libertos de preconceitos.
Ver a pintura de Filinto Viana, que está sem atelier, fica para outra vez. Vou até Buarcos pagar uma promessa de visita à exposição de Fernando Campos que se encontra na MAGENTA – Associação dos Artistas pela Arte, casa onde se pressente a vibração de interesses artísticos humanizados, longe do luxo envernizado das instituições de poder.

"A Batalha de Huambo" 1993.2

“A Batalha de Huambo”, de Fernando Campos, 1993.2

Fernando Campos na Magenta

Fernando Campos, além de outras experiências de pesquisa estética na área da escultura (“Achados”) apresenta o mesmo tipo de trabalho desenhístico que esteve patente numa interessante exposição colectiva de artistas da Figueira, mostrada recentemente na Casa Municipal da Cultura em Coimbra, cujos visitantes lamentavam a falta do elementar amparo de um catálogo com documentação adequada a respeito de obras e de seus autores.
O traço a carvão do artista solta-se de modo espontâneo em busca da forma desejada, sem a preocupação de ocultar alguns dos gestos estruturantes da ideia, o que confere ao “risco” das figuras que encontra, uma “vibração” ou um “movimento” que as torna por vezes imponderáveis. Figuras essas, aliás, frequentemente marcadas pela estranheza de reduções e acentuações de perfil, o que as coloca entre o misterioso e o inquietante.
As fisionomias, os membros, as máscaras e todo o conjunto de símbolos aparecem reforçados por tonalidades cromáticas diluídas, mescladas e expressivamente compostas, condizentes com o universo de conteúdos que gira em torno de preocupações culturais e humanas de respeitável densidade.
A exposição resume-se a um número não muito abundante de obras de Fernando Campos, artista de largo e variado percurso, recheado de episódios significativos de valor estético. Fica prometida outra visita, portanto, que permita documentar melhor uma obra que evidencia uma abundante percepção da cultura artística dos nossos dias, no que ela tem de fenómeno plural, problemático e estimulante.

Alcina Marques de Almeida expõe na Casa Municipal da Cultura

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publicado no Diário de Coimbra no dia 2 de Dezembro de 2005

É muito belo que a raridade das excepções possa apanhar-nos desprevenidos de quando em vez, demonstrando que o imprevisto, aquilo que a sociedade já dera como improvável ou sem nexo, possa acontecer, com toda a naturalidade das coisas sublimes.
É inspirador visitar um artista genuíno, divagar com um poeta inspirado, tomar nota das palavras ditas e dos horizontes revelados, abrindo à luz a flor do pensamento.
Mas verdadeiramente invulgar é que isso possa acontecer sem ter de usar artifícios de linguagens, complexidades ou convencionalismos duvidosos.
É excepcional por exemplo visitar uma pintora de talento raro e verificar, com quanta candura despretenciosa, continua a mostrar na sala quadros de pintores certificadamente valiosos pelo conceito social, guardando num quartinho pequeno de arrumações outras obras suas, de muito mais mérito e originalidade, de muito mais intensa frescura criativa.

“Primum vivere, deinde filosofare”

Não é meu intuito ocupar-vos com frases providenciais de Aristóteles, apenas quero lembrar o privilégio que é poder abrir asas e voar, depois de se terem transposto com elegância e poder, todos os desafios fundamentais da vida.
Alcina Marques de Almeida é profundamente pessoa ao mesmo tempo que se descobre a si mesma como talentosa artista, cujo pensamento flui em cada gesto, exprimindo-se com elegância e gosto em praticamente tudo o que faz.
Uma artista que expõe quadros que são para mim como percepções poético-filosóficas ou sínteses minimalistas do mais evoluído esteticismo, prontifica-se a revelar sem temor todos os segredos cruciais da sua destreza oficinal, o local onde pinta, as técnicas e as tecnologias utilizadas.
E dá-nos a ver uma exposição inteira, tendo deixado em casa uma rectaguarda de experiências cheias de novidade genuína, passando com naturalidade por cima de todas as preocupações de caracterização estilística, indexação de influências, fixação de padrões de referenciação teórica ou qualquer outra necessidade de tornar complexo o que é intuitivo, intrincado o que é cristalino.
É isso que a torna diferente e é esse facto que me restitui toda a esperança no conceito por vezes excessivo e artificial da arte como situação organizada, do meio cultural como intrincado de relações, e da inteligência sensível como refém de categorizações excessivas.

Poética e transcendência do que é simples, mas não é “fácil”

A exposição que nos apresenta na Casa Municipal da Cultura é constituída por um número assinalável de telas, organizáveis por grupos bem caracterizados de exploração plástica, coerentes na economia de processos, no pluralismo de abordagens e na escolha criteriosa das melhores soluções.
Na galeria do jardim podemos ver um conjunto de experiências dispersas, indicativas duma liberdade desejável para todo o artista ou registo de etapas vencidas, no desejo incontido de descoberta que o olhar atento vai colocando em reserva de contemplação activa.
Na sala principal foi eleito o conjunto mais forte, porventura aquele que agrupa os trabalhos mais recentes e com maior coesão estética.
A sua execução é marcada pela intuição liberta de preconceitos, sendo evidente uma extrema simplicidade de processos que conta com a energia estático-dinâmica da matéria da pintura e a sua confluência em zonas de diluição expressiva, escorrências, drippings e outros processos de execução automática que possuem toda a legitimidade. O aproveitamento de vestígios do suporte ou de “perfurações” do tecido cromático produzem o mais surpreendente efeito de afundamento das manchas de cor numa complexidade de planos remotos, nos quais o recortado daqueles vestígios chega a sugerir o que quisermos numa visão de mistérios insondáveis.
Os trabalhos de mais acentuada economia de sinais atingem um notável sentido de sublimação da pintura, o que não significa de modo algum – tal como a referida simplicidade de processos – o empobrecimento ou despojamento dos conteúdos estéticos, antes contribuem para a sua excelência.
Valerá de muito pouco apontar paralelos de afinidade estilística, embora isso seja um exercício de requinte intelectual. A pintora, cuja fluência produtiva é duma surpreendente abundância, desmentirá que tenha agido em obediência a influências tutelares, concorrendo o próprio despojamento de apresentação das telas, que nada mostram para além da superfície pintada, para reforçar o sentido da essencialidade defendido pela artista.
Essa circunstância é tão profunda em Alcina Marques de Almeida que começo por conversar com ela em áreas de razão cultural e acabo falando a respeito dos netos, ou seja, começamos por elaborar sobre conceitos abstractos e distantes e acabamos por nos fixar no essencial da vida, naquilo que tem de mais consanguineamente encadeado aos enlevos do presente e aos magníficos e imponderáveis sonhos do futuro.
O desdobrável que apoia a mostra é duma precária modéstia, o que demonstra que os caminhos trilhados pela cultura institucional conduzem a uma progressiva descaracterização dos seus actos.
Poupar na cultura, na arte e nos artistas, será essa realmente a solução para debelar os deficites catastróficos?

Arte contemporânea, na sub-cave ou perto das nuvens?

 

publicado no Diário de Coimbra no dia 04 de Novembro de 2005

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Tenho à minha frente três convites endereçados durante o mês de Outubro para outros tantos e diferentíssimos acontecimentos de arte contemporânea.
Reservando um deles para tratamento ulterior, por especialmente significativo (inauguração da Galeria Sete), considero hoje a exposição “e = mc2 Representações da ciência na arte contemporânea”, patente no Colégio das Artes e uma, a meu ver, mal designada exposição de “pintura contemporânea”, que tem lugar na Casa Municipal da Cultura.
Sem desconsideração por alguns dos trabalhos ou pelos artistas expostos, venho alertar para uma questão que já não deveria ter lugar em parte nenhuma: o equívoco de ser tomado à letra o termo “arte contemporânea”, fora da categorização crítico-histórica respectiva, por muito conveniente que isso possa ser promocionalmente.

Exposições de arte sim, “pendurações” de quadros não!…

O evento, sabemo-lo por ter lido no convite, deve-se ao apoio de uma galeria de arte. Tendo esse facto toda a legitimidade, não exime de responsabilidades a entidade cultural pública, que deve garantir para cada realização um nível de coerência programática, aqui revelada como inteiramente inexistente. Aos olhos do visitante ressalta o anonimato da realização, carente de catálogo ou outro apoio de carácter documental.
As obras expostas não constroem um conjunto equilibrado, são duma assimetria estética evidente, situando-se na sub-cave dum entendimento amadorístico de “promoção cultural”, em nada alinháveis com a ideia de arte contemporânea, até pelo facto de se apresentarem doméstica e maioritariamente sujeitas ao “compromisso” da moldura.
Saio da Casa Municipal da Cultura e dirijo-me, escadas monumentais acima, para mais perto das nuvens, entrando no largo claustro do Colégio das Artes ornado de peças de arqueologia industrial e azulejos que acusa, em toda a dignidade das suas proporções, aquela negligenciada decadência de tanto do nosso património.
Ali sim, não há dúvidas, estamos perante uma exposição de arte contemporânea que, não menos que a ciência, é um domínio de interesses afastado da vulgaridade; facto que nos oferece, sem surpresa, uma convergência intrincada de leituras, com catálogo da mostra anunciado lá para o fim da mesma.
Se tal edição interessa sobretudo às entidades promotoras e aos artistas, para efeito de auto-representação, o facto não deixa de sinalizar o desinteresse pelas audiências e a dispensa de comunicabilidade atribuídos à arte contemporânea, que opta por um público restrito ao qual requer uma peculiaridade específica de atitude. Donde o conceito de “obra aberta” defendido (há mais de quarenta anos…) por Umberto Eco, segundo o qual a mesma pode ser considerada como uma “metáfora epistemológica” e a sua interpretação uma interacção comunicativa entre artista e destinatário.

Todo o mundo é composto de mudança

A arte contemporânea propõe uma radical mudança de atitude cuja matriz vem das primeiras décadas do século passado (Dada e Marcel Duchamp) e se corporizou no decurso dos anos 60.
Nada tem a ver com a tradicional produção de “objectos estéticos” que procuram fixar o olhar reverente mediante “representações” afinadas por primores do “saber fazer”.
No ritualismo da “performance” situa-se um dos momentos essenciais duma procurada “desmaterialização” da arte, na qual o artista e o seu gesto se substituem à obra, no palco duma luta utópica “para regenerar a existência”.
A arte contemporânea tem vindo a afirmar-se durante as ultimas quatro décadas junto dos principais centros de decisão e promoção das artes. É conhecida como expressão do ideário pós-moderno, coincide com a era da globalização, com a apropriação duma forte componente tecnológica (arte-vídeo, arte-informática, etc.) e não menos reflecte os posicionamentos das políticas neo-liberais.
Uma afirmação tão categórica não tem sucedido sem polémicas, algumas de histórico e contundente efeito. Quem permanece atento é bem conhecedor desses factos, apenas algumas almas simples parecem incólumes ao decorrer de tão acidentados percursos…
Aliás, como qualquer outro movimento artístico-intelectual, tem os seus pontos fortes, os seus pontos fracos e os seus “pontos zero”!
Muito embora os curricula de alguns intervenientes que conquistam a certificação de artistas contemporâneos estejam recheados de referências notáveis, o que só uma conveniente inserção estratégica pode garantir, também aqui se nota a raridade de ideias genuínas e a super abundância de repetições e falsificações, algumas a evidenciar a auto-suficiência de um novo e fatalmente ultrapassável academismo, ao qual nem sequer falta, como já vimos, uma apreciável antiguidade.

Serralves em Coimbra, Serralves na Figueira da Foz

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Obra de António Palolo exposta na Fª da Foz; Acrílico s/ tela, “Sem Título”, 100 x 180 cm

publicado no Diário de Coimbra no dia 21 de Outubro de 2005

Tendo visto anunciados os dois acontecimentos constituídos a partir de obras pertencentes às colecções de Serralves, uma no Pavilhão Centro de Portugal e outra no Centro de Artes e Espectáculos, nada mais natural ter pensado que valeria a pena visitar ambos, lamentando que as duas exposições não sejam motivo de apreciação conjunta de pessoas que pudessem tecer a seu respeito um interessado debate.
Em torno das designações de “arte moderna” e “arte contemporânea” florescem os equívocos, prevalecendo a utilização subjectiva e oportunista de uma e de outra, não desejando ninguém ficar de fora no momento de se reivindicar como apreciador e adepto de qualquer delas.
O século XX foi caracterizado por uma aceleração tremenda dos acontecimentos em todas as áreas, e julgo que não houve ainda tempo para dominarmos uma imensidade de aquisições riquíssimas que já vão sendo, com demasiada precipitação, lançadas para zonas de sombra da apreciação colectiva.

Em Coimbra, arte pobre

A mostra assim designada patente em Coimbra parece representar, para a época trepidante e já “remota” a que se reporta, uma espécie de reverso da medalha duma cavalgada ofegante e contraditória de realidades artísticas e sócio-culturais de certo tipo, gesto de actores insatisfeitos no palco da representação artística ou invulgar processo de contestação do “establishment”.
Será aquilo arte? Se nós quisermos, será, pois claro.
E se eu for buscar ali ao ferro velho uma cama enferrujada, e lhe puser em cima uma trouxa de trapos velhos, também posso dizer que são arte?
Aí o caso complica-se. Porque aquela cama de ferro velho que está no Pavilhão do Centro de Portugal não é uma qualquer. Eu não sou grego, nem me chamo Kounellis, nem tive a ideia antes, nem estava lá perto de quem pôde dizer com a autoridade crítica, um alto comissário talvez, que aquilo era arte e que viria parar a Serralves!…
A contestação, se o foi, acabou por resultar com todo o êxito, dado que acabou por ser “assimilada”, e de que maneira, pelo mesmíssimo “establishment”.
Não quero evocar com detalhes a circunstância de a minha cama de ferro velho ter um valor patrimonial zero, face ao “valioso” espécimen de Kounellis. Dessas coisas de dinheiros, em artes, não se fala porque parece mal, ainda que sejamos nós a pagar, como é o caso de uma colecção pública e fortemente subsidiada.
Levantar questões destas é para quem quiser pensar pela própria cabeça e nenhum jovem licenciado em humanidades à procura de emprego em instituições culturais deverá assumir tal risco.
A menos que esteja bem preparado para responder àquela questão que às vezes é feita nas entrevistas de contratação, depois de apresentado o “curriculum”:
– E além disso, você conhece “alguém”?

Na Figueira da Foz, o Plano atravessado

A mostra que é apresentada na Figueira da Foz é totalmente diferente. Ali já podemos pressupor o vulto do artista no espaço oficinal respectivo, muitos frascos com tinta e a floresta de pincéis no chão ou sobre a mesa.
Os quadros, ou pinturas, ou objectos, são igualmente desafiadores do conceito tradicional ou académico. Existem, no entanto, os mais evidentes sinais de um “exercício excelente” da produção de peças únicas ou seja, da “materialização” do objecto estético.
O evento goza do esplêndido conforto do edifício em que se encontra, e nem lhe falta um razoável catálogo que está à venda na livraria residente.

Em França, o centro do mundo e os novos (velhos) academismos

O comentário adequado destes acontecimentos teria de passar fatalmente pela citação de uma inesgotável quantidade de posições e polémicas oriundas, “et pour cause”, de Paris de França, pelo menos. É pena não haver espaço para tal, pela abundância de argumentos que se tem acumulado em torno da discussão crítica da questão.
Limito-me a referir a importância crescente e tentacularmente exclusivista que a afirmação da “arte contemporânea” tem tido entre nós, nos últimos anos, averbando os principais gestos de investimento e promoção pública das artes.
Uma maioria dos mais dignos e recentes espaços culturais está-lhe dedicada, o que não se passa, “mutatis mutandis”, de forma tão depreciativa para o pluralismo e variedade de perspectivas em Madrids, Parises e outros “centros do mundo”!…
Ou seja, uma sociedade que passou pela vastíssima modernidade de olhos baixos, como a nossa, parece disposta a render-se à contemporaneidade, sem saber de facto o que quer dizer uma e outra coisa.
Valerá a pena referir que algumas das ideias e princípios directores da arte “contemporânea” já datam de há quase um século, o que lhe retira de forma absoluta o odor de novidade e lhe acentua a semelhança com os persistentes academismos de outras épocas, que o tempo foi varrendo, ao fim e ao cabo.
Serralves em Coimbra e na Figueira da Foz, a não perder!…

A “Paleta Inacabada” de Telo de Morais e duas exposições de Verão

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publicado no Diário de Coimbra no dia 01 de Outubro de 2005

Telo de Morais entregou-me o seu livro às portas dum Verão alucinante e eu juntei-o à bagagem confusa duma saída para dentro, simulacro de férias que nunca são, pretexto de evasões inconsequentes e breves.
Por sobre os textos da obra fiz, como tantas vezes acontece, um voo rasante à máxima velocidade dos motores da curiosidade e da surpresa.
Ficou-me uma primeira página do prefácio de Rocha de Sousa, encadeado de conceitos que apontam em todas as direcções do encanto e da razão dos sentidos, no múltiplo significado que a palavra tem.
Em Rocha de Sousa cada frase é como o obturador vertiginoso que abre sucessivos planos sem dar tempo a um para que se fixe o outro, gerando a totalidade de impressões uma fecundidade intertextual que convida à reflexão, e ilumina o mundo de policromias sem margens.
Ficaram-me depois a sucessão de intervalos fotográficos que a obra apresenta, sugestão de dramatismos celestes, “retratos de céu” que sugerem um instante suspenso, algures, entre a plenitude da tarde e o segredo de horizontes inquietantes, embalados de negro.
Por fim as trinta visitações da sempre inacabada paleta, resultantes dum pluralismo de gosto sem preconceitos e duma memória sem fronteiras que convidam à análise, linha por linha, dos referenciais vividos e das sensações participadas.
O livro de Telo de Morais fornece, nesse sentido, não uma legenda explicativa, um amparo caracterizador ou itinerário do gosto. Cada texto é como que uma corda musical deixada a vibrar por ondas de choque da visão complexa de pinturas, desenhos, etc, e da teia de relações que tais objectos mantêm com a própria vida.
Os nomes, as referências factuais e de contexto serão, ao gosto e de acordo com as armas de cada um, pontos de partida ou de chegada, ancorados algures entre a visão crítica e a sensibilidade poética.
Ter assumido o risco de mencionar, junto de cada texto, o nome ao qual o mesmo diz respeito, remete para o carácter que a obra tem de referencial de uma forma de arte e de um tempo simultaneamente próximos e longínquos do nosso. Tempo nosso habitado por homens que se apressam, talvez precipitadamente, em colocar na prateleira do passado um imenso património semioculto e precioso.
A “Paleta Inacabada” de Telo de Morais vem precaver-nos contra o risco do esvaziamento e da ausência. Mas não é só por isso que continuo a lê-la, agora que se despede o Verão.

O Chiado com Torga e o Pavilhão de Portugal com Inês

O Museu do Chiado apresentou “Novos Olhares” que reuniu principalmente obras de artistas que cursaram a EUAC, no espaço concentrado de que a galeria dispõe.
Telo de Morais, no texto de catálogo, efectua um trabalho generoso e muito atento que pretendeu compatibilizar as obras expostas com o universo Torguiano, que alguns visitantes terão tido dificuldade em associar com o clima estético que a exposição propunha.
Julgo não ser essencial a concretização de tais associações, se cada uma das peças puder trazer-nos algo, mesmo que francamente alheio às vivências imediatas que a literatura de Torga sugere.
O mesmo risco não corre, por exemplo, a exposição que esteve patente no “Pavilhão Centro de Portugal”.
O tema eleito, “O nome que no peito escrito tinhas”, cingiu-se bem à teia de significados propostos pelas obras vistas sem perda de variedade e interesse das abordagens estéticas.
Já são várias as exposições de qualidade que vi naquele pavilhão e que beneficiam do luxo de espaço e luz natural indirecta que a notável peça arquitectónica proporciona.

Exposições colectivas e riscos inerentes

Certas exposições colectivas, sejam ou não de Verão, transportam consigo, por vezes, uma contradição esquisita que contraria uma das mais simples regras da matemática: a de que um conjunto é perfeitamente igual ao somatório das partes.
Há obras que se “desajudam” tanto umas às outras, que fazem com que “tirá-las” teria sido melhor do que “pô-las”, o que conduziria ao drama de haver mostras representando autênticos “conjuntos vazios”, o que não é de modo nenhum o caso vertente.
É certo que Ana Vidigal, Catarina Campino, Joana Vasconcelos e Rui Sanches por um lado e Costa Pinheiro, José de Guimarães e Pedro Proença por outro, não deixam de ser astros de galáxias muito distantes.
Mas as engrenagens alusivas que cada um elabora na perspectiva do tema permitem não somente uma viagem através do drama Inesiano, bem como propiciam localizar as coordenadas de evoluções plásticas e ideológicas bem colocadas no devir das artes visuais.
Nem todas as exposições têm, contudo, os meios que poderá ter tido esta, com tão altos patrocínios e com tão amplo terreno de escolha das obras a mostrar.
A Exposição reparte-se por dois conjuntos, patentes em Coimbra e Alcobaça, sendo desejável que se efectue uma rotação dos mesmos, sem o que ficará truncada a imagem que nos fica da totalidade do acontecimento. Aguardemos pois.

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Júlio Resende e a Orquestra Clássica do Centro, fim de Verão cultural em Cantanhede

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File-0069-pobra de Júlio Resende exposta em Cantanhede; “Mulher e Tecidos”, pastel, 2000, 65 x 51 cm

publicado no Diário de Coimbra no dia 15 de Setembro de 2005

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Nada melhor que um pedaço de tarde com nuvens frescas abrindo clareiras no azul do céu, debaixo da larga copa de um monumental pinheiro manso para reentrar, neste fim de Verão, numa coisa de que afinal nunca havíamos saído: a alegria da arte e a essência incomparável da música.
A totalidade deste conjunto de sensações desenrolou-se no Jardim do Museu da Pedra e culminou a abertura de uma exposição de Júlio Resende inaugurada na Casa Municipal da Cultura, tudo em Cantanhede no dia 10 de Setembro último.
Para os amigos da pintura e da arte portuguesa ou seja, da arte universal, Júlio Resende é uma figura que se persegue em continuidade de interesse e prazer estético ao longo de toda uma longa vida produtiva. As memórias de episódios criativos são inumeráveis, e basta-me por agora mencionar o prazer que tenho tido em visitar o “Lugar do Desenho” em Gondomar, fundação que tem o nome do artista.
Instalada numa ladeira sobranceira ao Rio Douro é local cuja visitação recomendo sem reservas, por um variado conjunto de razões que não cabem no espaço desta crónica.

Promover a Arte com sentido de projecto

Há muitas formas de gerir meios de promoção cultural e artística. Poderá haver quem julgue que tudo vai dar no mesmo e o que é preciso “é boa vontade” e desejo de “apresentar serviço”.
Já tenho dito nesta coluna, de muitas e variadas formas, que não é indiferente o modo como tal trabalho é feito, não devendo confiar-se a acasos descontínuos o aproveitamento de conteúdos assimétricos, improvisando e facilitando formas de dar a ver, meios de apoio documental, etc.
Sem poder falar de todo o conjunto de iniciativas que têm lugar em Cantanhede, porque não tenho ido ali tão frequentemente quanto desejaria, devo contudo afirmar que, como várias outras, também as presentes realizações me dão a ideia de um labor estruturado com bom gosto evidenciando, além do mais, uma generosidade comunicativa e pedagógica que me parece ser ideal para um trabalho com vocação de futuro.

Um músico fala com olhos de quem também pinta

Virgílio Caseiro, que regeu a Orquestra Clássica do Centro no concerto que teve lugar, para prazer de todos, depois da inauguração da exposição, também visitou a pintura e repartiu impressões que lhe mereceram as obras expostas.
Falámos sorrindo da aparente simplicidade de algumas das peças, e daquela suposição absurda que muita gente assume: “olha, uma coisa destas, também eu fazia”…
A verdade das coisas, porém, não é assim tão simples. Nem a vastidão assustadora do suporte se preenche de levezas subtis sem que a mão do artista esteja animada de gestos com asas, nem os materiais usados se dispõem por si só, com mágica e automática clarividência.
Aquelas duas telas justapostas que o artista pintou com pigmentos retirados da “paisagem” cabo-verdiana são o exemplo da “transcendência de facilidade” que há em sugerir horizontes, precipícios, céus e anónimos objectos da natureza, a partir do gesto mais aparentemente simples, na economia de processos que só um pássaro demonstra ao voar alegremente acrobacias, ou uma onda quando negligente exibe formatos ao estender-se pela areia da praia.
O simpático livro que é editado para valorizar adequadamente o acontecimento distingue-se de certas pagelas ou calhamaços de deitar fora, ornados com pouco mais que o texto oportunista desta ou daquela individualidade autárquica.
Pelo contrário, neste caso, é o próprio artista que nos confidencia as suas impressões e percepções estéticas, em “visita guiada” a cada uma das obras expostas.

Resende colorista, da aguarela ao óleo, até à tapeçaria

O título da mostra é “Resende, uma vida de cor”, facto que acentua uma das principais facetas dos trabalhos apresentados: o tratamento livre e desmistificado (como o autor refere à entrada do mesmo livro) de traços e manchas de teor cromático através dos mais diferenciados meios de registo, muitos deles não mais do que sinais em confronto livre, que dão a entender, não obstante, a transcendência dos valores construtivos de todo o universo das artes plásticas, nas disciplinas expressivas de agora e de todos os tempos.
Obras de Júlio de Resende na Casa Municipal da Cultura de Cantanhede, até 27 de Novembro.

Um painel de azulejos para as terras do fim do mundo

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fragmento do painel aqui referido

 

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Abril de 2005

O meu amigo Ernesto Insua tem o privilégio de viver mesmo ao pé do fim do mundo. É galego de Finisterra, e assume com sentimento e sensibilidade cultural o facto de ser duma região cujo nome traz memórias de tragédia e assusta o visitante que não conhece a sumptuosa paisagem e a paz das suas enseadas de mar adentro: é a Costa da Morte!…
Lugar de muitos mistérios vividos e de muitos outros inventados comunga desse património lendário dos sítios dos quais se diz que ali a terra acaba e o mar começa. Quando ainda não se tinham consolidado fronteiras nesta parte da Europa, foi ali porta de entrada de santos e piratas, invasores ferozes e muitos viajantes marinheiros.
Do concreto conhecimento que Ernesto tem de Portugal, uma coisa lhe prendia a atenção: na sua terra não havia ainda ninguém que se tivesse lembrado de mandar executar um painel de azulejos, esse jeito tão nosso de revestir paredes e cativar imaginários.
Foi em conversas de serão que surgiu a ideia de fabricar essa última coisa que não havia ainda no seu acolhedor hotel rural, finamente instalado em residência antiga de família.
O painel era para uma parede de pedras de granito à ilharga do belo jardim, no extremo dum pórtico, virado para o poente ou seja, para o lado do grande cabo que assinala o fim das peregrinações, sítio mágico de onde se vê o Sol mergulhar no mar longínquo.
Ernesto foi idealizando o seu imaginário painel e eu tomando notas, sem me importar se iria ser possível ou não colocar lá todos esses fins do mundo, essas figuras e céus testemunhas de tanta lida e tanto querer.
Meses depois, com cartas e visitas pelo meio, vejamos então o que já lá está, para durar anos e anos, colocado na parede e olhando para todos os hóspedes e visitantes:
O elemento central é uma rosa dos ventos, objecto simbólico distribuindo o nosso olhar em direcção a quatro paisagens de outros tantos “fins da terra”: Cabo da Roca em Portugal, Lands End na Cornualha, La Pointe du Raz na Bretanha, e o Cabo Finisterra, ali ao pé, na Galiza.
Ao centro, num globo terrestre, aparece a visão distante e sugestiva “do outro lado do mundo”, sonho e destino de vida de tantos milhares de galegos: o continente americano.
À esquerda, em cima, o “painel do peregrino” ostenta a concha de vieira como referencial simbólico, dá-nos conta da proximidade e convivência entre o mar e a serra que o país galego tão abundantemente nos oferece, e da sua enorme componente rural de que o “hórreo” é um adereço insuperável.
No lado superior direito, pairam acima de Land’s End desenhos inspirados na arte rupestre galega, sinais antiquíssimos que sugerem barcas e seres que entendi inscrever no céu, à distância das coisas mágicas e indecifráveis que estão na mais remota memória dos homens.
Em baixo, de ambos os lados da Pointe du Raz, alusões à fauna marítima no seu espaço submarino e à presença das mulheres como protagonistas fundamentais do hercúleo combate travado entre mar e homens na conquista do sustento diário.
Aparece também o indispensável perfil duma traineira que, por sinal, também faz parte do meu imaginário infantil, vivido muito perto do litoral com barcos, mar e pescadores à vista.
Como envolvente dessa variedade de temas foram utilizados grafismos inspirados na arte Celta, cultura referível às áreas geográficas desses quatro grandes Cabos. Isto, em jeito de cercadura, elemento presente em grande quantidade de painéis de azulejos, agora utilizado de forma muito livre, para aglutinar ideias de difícil conciliação visual.
A tradição do azulejo artístico português está pois, a partir de agora e por obra minha, presente em Finisterra, por decisão de um galego amigo e conhecedor das tradições culturais da nossa terra.
Honra seja feita a Ernesto, galego das sete partidas que já foi às Américas vezes sem conta mas que não deixa de olhar Portugal com carinho e atenção de todas as vezes que o visita!…

0016 ab (6) p
outro fragmento

 

ARCO 2005, crónica duma peregrinação anunciada

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Obra de António Segui, exposta na ARCO 2005

Publicado no Diário de Coimbra de 23 de Fevereiro 2005


Para os interessados nas artes, com maior ou menor nível de envolvimento profissional, há um fenómeno que tem adquirido nos últimos vinte anos, como nenhum outro, o carácter de acontecimento altamente interessante e, por isso, frequentável.
A ARCO, feira das artes de Madrid, lá pelos inícios de Fevereiro de cada ano, recebe a visita regular de um contingente numeroso de portugueses que, envolvidos na multidão de outros visitantes, ali vão dar fé de “como vão as artes”, de quais são “as modernas tendências” e do que é que “está a fazer-se lá fora”.
A cidade de Madrid, com uma enormidade de recursos variados, sempre cobre as eventuais insatisfações que o acontecimento em si possa suscitar, explorável de modo superficial no decurso de uma só tarde muitíssimo fatigante.
Tratando-se de uma feira, por isso com intuitos mercantilistas, não deixa de evidenciar um imenso apoio institucional, o que se harmoniza bem com a invulgar energia que os espanhóis colocam nas suas organizações.
O certame, como justaposição de galerias de todos os géneros e proveniências, oferece um caleidoscópio confuso e excessivo de experiências as mais desencontradas, convivendo em dois largos pavilhões obras dos autores mais consagrados com outras de cuja real valia temos todo o direito de duvidar.
Gozando do privilégio de poder fotografar ou filmar todo e qualquer objecto exposto, tem ainda acesso o visitante a editores de obras de carácter artístico, além de representações institucionais como departamentos de cultura de diversas autonomias espanholas, etc.

A ARCO, um marco que se afirma no “nosso” horizonte cultural

Ao fim de vinte e tal anos de participações portuguesas (o que corresponde à atribuição de subsídios de parte do estado, em condições cujo detalhe desconheço) julgo que era tempo de começarmos a ver também resultados, ecos ou aproveitamentos activos de definição e reforço de um comércio artístico de iniciativa própria.
Têm surgido, e são conhecidas, certas iniciativas ao longo de todos estes anos, ao nível de Lisboa e Porto principalmente, nenhuma contudo do género e da pujança que é patente na ARCO, nem ostentando o grau de continuidade que a mesma tem afirmado.
Não haverá entre nós interesse que justifique alguma dedicação a assuntos deste tipo?
Existirá ou não alguma conveniência em estruturar um mercado das artes autónomo, pronto estimular e satisfazer inclinações, carências e aspirações que nos são próprias?

Um interesse artístico que apenas sobrevive

Segundo referências mais que evidentes é abundante o número de agentes artísticos interessados em adornar o seu curriculum com uma presença na ARCO, onde coleccionadores portugueses vão para adquirir obras de artistas nossos e em galerias da mesma nacionalidade.
O facto denuncia, a nível da iniciativa privada, que o nosso meio não é capaz de gerar suficiente dinamismo para pôr em marcha as suas potencialidades, que um simples ensejo de compra “lá fora” começa a gozar de certo apelo e constitui teor de certificação de qualidades que entre nós ninguém ousa, ou deseja, ou pode colocar em evidência.
A nível das instituições públicas de intuito cultural, a despeito de alguns acontecimentos de êxito incontestável cuja ocorrência é mais excepção que regra (referíveis geralmente a individualidades de percurso ou nacionalidade estrangeira) o calendário nacional preenche-se de inumeráveis realizações heterogéneas, prejudicadas no seu todo por uma descontinuidade de critérios expositivos, longe de esquemas programáticos capazes de formar novos públicos e de mobilizar o interesse dos apreciadores já consolidados.
Em muitas outras circunstâncias não está o interessado visitante livre de se encontrar em salas vazias tocadas por vícios de hermética incomunicabilidade, palco de dignidades mais ou menos solenes detentoras do privilégio duma intocável auto-suficiência.
A esse respeito interessaria conhecer de forma clara qual o nível de aproveitamento de todo esse funcionalismo cinzento metalizado, quais os seus critérios de valor e qualidade estética, qual o seu sentido de futuro, de projecto cultural, etc.
Se ninguém persistir na colocação destas perguntas, como poderá ganhar significado e produzir resultados o interesse artístico que apenas sobrevive entre nós, mas de modo disperso, confuso e improducente?
Se não forem jamais respondidas tais questões quem é que vai livrar-nos desta solidão, deste sentimento de andar sempre a correr em círculos?
Ficaremos assim para sempre, a ir cada vez mais, uma vez por ano, às ARCOS?

ASeg“El Palo Sagrado” de Antonio Segui

Os painéis cerâmicos de Querubim Lapa nos Hospitais da Universidade de Coimbra

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083-pPainel de azulejos relevados de Querubim Lapa, “Os Sete Espelhos de Narciso”, 187 x 127,5 cm, exposto em 1994 no MNA

NOTA: Mesmo nos edifícios públicos pagos por todos os contribuintes, com obras de arte que deveriam ser de usufruto aberto a todos os cidadãos, impera um sentido de propriedade privada que impede os mesmos cidadãos de colher imagens das obras de arte expostas. Já fui incomodado várias vezes ao tentar documentar-me para efeito de prazer pessoal ou de divulgação absolutamente gratuíta como é aquela que aqui faço. A obra acima colhi-a num catálogo de uma exposição que comprei no Museu do Azulejo. Nada tem a ver com o painel dos Hospitais da Universidade de Coimbra porque não ousei enfrentar os seguranças ali presentes e também porque não estava disposto a percorrer o calvário da burocracia feito pedinte de imagens. Já agora, aos visitantes desta notícia, sugiro que coloquem no vosso “browser” a expressão “hospitais da universidade de coimbra, paineis de querubim lapa”. É só uma pesquisa exploratória. O que é que aparece? Os painéis de Querubim Lapa dos HUC? NÃO!… O que aparece, além de muitas e desvairadas imagens de que é fértil a net, e em primeiro lugar, ESTA MESMA IMAGEM que eu coloquei já há muito nesta notícia; A ÚNICA QUE EXISTE NA NET sobre os painéis de Querubim Lapa ali presentes!… Acham que é preciso acrescentar mais alguma coisa???…

 

Publicado no Diário de Coimbra de 27 de Dezembro de 2004

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Vistos já certamente por milhões de pares de olhos, bem merecem uma cuidada inscrição no mapa das nossas referências estéticas para Coimbra do sec. XX..
O autor é um artista excelente no panorama das artes plásticas do seu tempo, com preparação académica em pintura e escultura, com uma notável actividade pedagógica na área das artes do fogo e com um estruturado talento que lhe permitiu afirmar-se como desenhador, pintor, escultor e ceramista. É esta a disciplina que mais notoriedade lhe granjeou, não figurando no grupo dos pintores que apenas concebem e projectam obras de arte cerâmica.
Querubim, mais do que isso, afirma-se como executante, intervindo directamente na produção dos trabalhos de sua autoria que atingem um nível de expressão invulgarmente rico e original. Daí que tenha conseguido o acesso a facilidades técnicas notáveis, em meio fabril, mediante as quais pôde conduzir larga actividade experimental.
Uma imensa produção de objectos cerâmicos de todo o tipo, moldados de acordo com as suas determinações, são depois recobertos pelo artista com esmaltes cuja cozedura produz o efeito mais feérico e surpreendente que é possível neste domínio de expressão plástica. Uma das propriedades desses esmaltes, vertidos sob forma líquida, é a de reagirem entre si, produzindo inesperados efeitos de cor, que o artista utiliza com especial maestria.
Quanto ao revestimento parietal essa técnica designa-se da “cerâmica relevada”, e representa uma modalidade artística que oscila entre o relevo e a forma escultórica, muitíssimo mais requintada e dispendiosa que a dos mais modestos quadriláteros cerâmicos pintados a pincel com cores lisas a que chamamos azulejos.

Os esmaltes cerâmicos e os mistérios do corpo

As placas rectangulares que compõem o extenso painel que se encontra no átrio principal dos Hospitais da Universidade de Coimbra, não sendo azulejos clássicos de cores planas, também não são classificáveis na categoria do revestimento cerâmico relevado.
Evidenciam, é certo, acentuações relevadas separando as diversas zonas de cor ou reforçando a perceptibilidade de certos grafismos, oferecendo por isso uma plasticidade enriquecida e aproveitando muito bem a penetração de luz exterior naquela área do edifício.
Concebida para ser contemplada desde o momento de entrada no vasto espaço em que se encontra, a obra apresenta na zona central uma sugestão das estruturas internas do nosso corpo, conferindo acentuada monumentalidade a detalhes orgânicos que têm tudo a ver com a misteriosa vulnerabilidade de que somos feitos. As largas avenidas por onde transita o sangue, os mais recônditos alvéolos pulmonares até aos quais o ar é incessantemente inspirado, produzindo depois, através de faringes, larínges e traqueias, o milagre da voz, a aflição de um grito e o mistério encantado ou funesto de um gemido.
De cada lado desse núcleo aparecem alguns rostos mergulhados numa indeterminação de branco e azul, porventura sugestiva do intervalo doloroso que a enfermidade abre na vida daqueles que entram no Hospital, esperando, na bondade da ciência, socorro na aflição ou alívio no sofrimento.
As proporções da obra, a sua distribuição ao longo de uma superfície articulada e o carácter plástico do material de que é composta libertam-na, de certa forma, da necessidade duma análise de conjunto, o que ajudará a mole de visitantes a procurar na obra o melhor que ela tem para lhes dar ou seja, um certo ar festivo e optimista que é reforçado pela luz intensa das melhores horas do dia.
É nas bandas inferiores e laterais da composição que vai sendo esquecida a disciplina de figuração temática a que a obra se sente vinculada, afirmando ali a expressão mais personalizada do universo do autor.

O painel de Querubim Lapa carece de… intervenção cirúrgica!…

Causa um certo desgosto ver uma obra tão importante, numa cidade onde não abundam os sinais da presença de artistas do nosso tempo detentores do perfil excelente que é Querubim Lapa, de tal forma afectada por contingências da superfície de suporte e das técnicas utilizadas na sua instalação.
Não é preciso ser especialista para notar a abundância de cicatrizes que retalham a obra ao longo de toda a sua extensão. Aqui e ali também são visíveis acções “de restauro” que não ajudam à melhoria nem técnica nem estética do seu estado de “saúde”.
Os painéis deste tipo devem ser aplicados com argamassas de certa elasticidade que possam neutralizar as tensões mecânicas sofridas pelas paredes de suporte. Mesmo que tais efeitos ocorram, as fissuras ocasionais apenas se reflectem ao longo das linhas de separações das unidades cerâmicas, que podem depois ser recolocadas após adequadas ações de restauro.
Segundo o que sei da melhor fonte, contudo, a recuperação deste magnífico conjunto está muito a tempo de fazer-se, restando esperar que bons olhos o vejam e que se coloquem mãos à obra nos cuidados intensivos de que tão urgentemente necessita. E nunca melhor dito, atendendo ao local onde se encontra!…

Azulejos de Eduardo Nery no Montepio Geral, à Portagem

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Publicado Diário de Coimbra 15 de Novembro de 2004

É muito vulgar que o custo de grandes obras dispare a certa altura do seu processo construtivo, acabando muitas vezes num preço cujo montante iguala, e por vezes supera, o dobro da verba orçamentada.
Não é preciso ilustrar com exemplos a enorme saga da “multiplicação dos milhões”, de tal modo se tornou vulgar o aparecimento de casos com o picante anexo das famosas faltas de “transparência”.
Se, contudo, um artista apresentar uma proposta para inclusão de uma obra de arte dignificante dum empreendimento, seja ele qual for, “ai Jesus que não há meios, ai meu Deus que grande crise”!… Mesmo nos casos em que o custo da peça artística não atinge sequer uma modesta fracção das alcavalas da nebulosa “intransparência”…
Do número incontável de propostas a quem ninguém respondeu, das que tiveram resposta ínvia ou, ainda pior, das que foram encomendadas e nunca foram adquiridas, nem é bom falar!…
O que seria de Coimbra se os homens dos séculos passados tivessem tido os mesmos critérios e evidenciassem a mesma indiferença perante os valores da arte?
Existiriam a capela da Universidade ou a Biblioteca Joanina? Os retábulos da Sé Velha e a sua Porta Especiosa? A talha dourada, as pinturas e os azulejos de mais de cinquenta palácios e igrejas? A pedra talhada dos relevos, as esculturas de vulto, a nobreza das torres, os campanários luminosos, a musicalidade comovente dos sinos e a ressonância orquestral dos órgãos?

O património, as expressões da modernidade e as novas formas de ver

As excepções existem, apesar de tudo, como migalhas esquecidas sobre a toalha enorme das edificações destes últimos 80 anos, mais coisa, menos coisa.
É sobre esse género de exemplos que estas “conversas” já começaram a debruçar-se, considerando certo tipo de obras notáveis poucos “vistas” e escassamente entendidas.
A instituição encomendante da obra mencionada em título já colheu, em termos da notoriedade alcançada pela mesma, o imenso reconhecimento que é patente em capas de livros, catálogos de exposições de âmbito nacional e internacional, cartazes de acontecimentos, menções em obras de autores estrangeiros, etc.
O painel foi aplicado naquela parede de fundo da agência, superfície quase impossível de conceber como portadora duma tal obra, por alcançar dois pisos diferentes que a não deixam ver inteira e situada detrás duma escada de dois lances, felizmente de concepção interessante pela relativa leveza da estrutura à base de metal e madeira.
A solução do artista, perfeitamente inserível no itinerário das suas preocupações estéticas no domínio da azulejaria e da pintura dita “op” ou seja, produtora de efeitos ópticos, foi uma composição abstracta que pudesse resistir à visão por sectores, evidenciando uma pujança cromática apoiada na riqueza de 16 cores organizadas numa sequência contínua retirada do espectro solar que, entretanto, parecem muito mais numerosas devido às interacções respectivas.
Ao nível da técnica cerâmica constitui uma inovação impossível até há poucos anos, dado que durante séculos a paleta do pintor de azulejos se encontrou reduzida a certo grupo de pigmentos, devido à instabilidade das cores que se situam na zona mais “quente” do espectro, os laranjas, os vermelhos, os roxos, os liláses, etc.

Atribulações de um quadrado amarelo em fundo de várias cores

O estudo da dinâmica cromática pode bem ocupar a imaginação criativa de qualquer cliente que espere para ser atendido e se ocupe decifrando planos que se interpõem, a interacção das cores e o jogo de efeitos visuais muito complexos.
De facto, ali se pode dar uma aprofundada lição sobre teorias da cor, entre as quais recordo os célebres tratados de Johannes Itten e as aprofundadas experiências dum artista como Joseph Albers, de quem recordo uma explêndida mostra, há um bom par de anos, levado a cabo pela saudosa Casa Alemã, sob o impulso raro e inolvidável de Karl-Heinz Delille.
Um quadrado amarelo será sempre igual a si próprio, ou pode “transformar-se” consoante esteja em fundo verde, azul, roxo, vermelho ou alaranjado?
E uma tira verde claro ou vermelho forte sob o efeito de quadriláteros de cores diversas é sempre categorizável como “cor de fundo” ou emerge, a certa altura, como “figura” de primeiro plano?
Sobram várias perguntas como estas , mas eu deixo à perspicácia visual do leitor, quando ali se deslocar, a tarefa de desmontar planos, ritmos, intersecções e interacções as mais diversas, com o privilégio de tal exercício ser possível de todo e qualquer ângulo de observação.
É de realçar que o painel apenas se compõe de azulejos simples de cor lisa de 14 cm que somente nalgumas sequências ostentam a “complexidade” de duas cores, por serem os que definem as linhas diagonais ascendentes ou descendentes.
Interessante será a observação do painel para quem suba ou desça a escada entre a cave e o rés do chão dada a confrontação prependicular entre a estrutura da mesma e a dessas barras diagonais.
Se o leitor se afirma incondicional apreciador de painéis de azulejos não deixe pois de refrescar o seu elenco de fruições estéticas com mais este produto genuíno da obra de Eduardo Nery adquirido, em tão boa hora, pelo Montepio Geral.

Azulejos de Ferreira da Silva no IPO de Coimbra

Foto de minha autoria dos painéis exteriores de Ferreira da Silva no IPO/Coimbra

Foto de minha autoria dos painéis exteriores de Ferreira da Silva no IPO/Coimbra

Publicado Diário de Coimbra 26 de Outubro de 2004

Falando com uma senhora dos quadros do IPO de Coimbra que se referia de modo sensibilizado aos trabalhos de Ferreira da Silva que ali se encontram como parte do património artístico da instituição, ouço algo que alude com especial importância aos mecanismos de percepção e entendimento das obras de arte em geral:
“…A primeira vez que vi aqueles painéis de azulejos, senti-me perturbada. Ultrapassavam a minha capacidade de entendê-los com aqueles cavalos enormes de vultos decompostos; as manchas inextricáveis; a acumulação de sinais!… Um dia alguém lhes fez umas fotografias destinadas a um interessante trabalho gráfico, e essa atitude analítica, distante do compromisso da visão conjunta, foi a porta que se abriu para uma leitura, primeiro da riqueza cromática, depois do imenso universo de vestígios simbólicos. No dia a dia, cada entrada e cada saída me iam revelando um aspecto novo, uma nova faceta. Até que dei comigo, na abundância de valores plásticos, a gostar de tudo, a perceber a totalidade das forças presentes, os detalhes como detalhes e as grandes figuras como interlocutores principais, no seu poder de animar percepções mais além do real, mais perto da ideia, do símbolo!…”

O amor, esse momento principal da atitude criativa

Não vou elaborar sobre este encadeado de observações mais do que o leitor pode e estou certo que sabe fazê-lo. O enredo das nossas percepções não depende apenas do acumulado de noções sobre esta ou aquela realidade. Os afectos; o querer gostar; o achamento das entradas por onde passe a aragem dum entendimento produtivo das coisas; o amor afinal que é, como sabemos, um acto deliberado da consciência valorativa.
Passando o observador uma e outra vez defronte do importante edifício do IPO, ficam-lhe os olhos suspensos no tropel de cores e de formas dos painéis de azulejos que ali estão. Se entrar no edifício, e oxalá não seja por motivo de doença, outros sinais verá da presença artística da obra de Ferreira da Silva, mestre das artes do fogo que para os lados de Caldas da Rainha reside e exerce o seu mister de artista frequentador duma enorme diversidade de disciplinas das artes visuais: da pintura à gravura, da multiplicidade de abordagens da arte cerâmica à escultura, à arte do vidro, etc.
Na área de Pombal da A1, à vista de todos, ali se encontra um painel de estrutura decorativa muito expressiva e cheia de alegria comunicante.
Na Quinta do Pinheiro, em Valado dos Frades, Nazaré, é toda uma multifacetada intervenção que o artista desenvolveu e que contempla os mais variados aspectos da visualidade do empreendimento turístico ali situado. Quanto ao labor que tem desenvolvido nas Caldas da Rainha e sobre uma continuidade de trabalhos de arte que se estende por decénios e se tem espalhado por todo o mundo fica por dizer o essencial, falha que procurarei aliviar, resumidamente por certo, em próximas “conversas”.

FS-p

Azulejos de Ferreira da Silva no IPO / Coimbra, fotografia e tratamento de imagem de minha autoria

A presença da arte lenitivo e estímulo para quem ama a vida

Em evidência nos azulejos do IPO encontra-se abundantemente explicitada a enorme familiaridade que o artista desenvolveu nas suas profundas incursões pelas artes do fogo em geral e pela linguagem da decoração azulejar em particular. Como autor de projectos Ferreira da Silva efectua em cada obra uma espécie de mergulho de corpo inteiro, fazendo com que a atitude da concepção não se detenha no momento inicial. Até ao último gesto de aplicação de pigmentos, até ao acto de montagem de cada quadrilátero cerâmico e se preciso for em gestos de composição final fora da própria sequência previsível de associação das peças, ali encontramos uma surpresa, uma decisão inventada que desafia o espectador e o coloca perante as mais sugestivas variantes da expressão plástica que o azulejo oferece.

A materialização da luz, preocupação central do artista

Quanto à pintura sobre azulejos propriamente dita, não se esgotam os recursos de novidade e encantamento. Uma técnica dominada pelo experimentalismo confere ao simples quadrilátero cerâmico a categoria duma peça em relevo, cujos pigmentos borbulham e ressaltam numa inquietação que a cozedura impôs, modulando as cores muito para além da monotonia de lisura de certa azulejaria vulgar. A utilização de processos de execução automática, ou máscaras, abre em negativo imagens que noutros locais se apresentam em positivo, e inúmeras variantes decorativas de fundo aparecem muitas vezes seccionadas por sinais de uma gestualidade resoluta e inesperada. Fissuras e vibrações de todo o tipo acrescentam a casualidade que só obras com vários séculos de idade podem oferecer ao apreciador inveterado. Bem fizeram os dirigentes e responsáveis do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil de Coimbra, ao terem adquirido os diversos trabalhos de Ferreira da Silva, ali presentes. Além duma atitude de bom gosto, foi de certeza um acto destinado a estimular a inteligência vital e a capacidade de encarar cada momento de vida com o mesmo desígnio intencionado de encontrar a luz que a obra de Ferreira da Silva tão coerentemente persegue.

Eduardo Nery no CAE da Figueira da Foz, azulejo, mosaico, vitral e tapeçaria

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Publicado Diário de Coimbra  1 de Setembro de 2004

Até fins de Setembro é ainda tempo para visitar a notável exposição retrospectiva de Eduardo Nery no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, que abarca a actividade do artista durante mais de quarenta anos em disciplinas tão variadas como o azulejo (com parte de leão), o mosaico, o vitral e a tapeçaria. De assinalar a qualidade da exposição quanto à distribuição espacial, ao desenvolvimento estético-pedagógico e à natureza especialmente valiosa dos conteúdos. Foi organizada por entidades museológicas nacionais, mostrada em Lisboa e Porto, e deveria ser chamada a desempenhar um importante papel junto de públicos diversos para além dos que são assíduos na visitação de actos artístico-culturais.

À atenção de donos e mestres de obras

Se tivesse o privilégio de escolher leitores, gostaria hoje de chamar a atenção de donos e mestres de obras, empreiteiros, empresários, arquitectos, autarcas ou outras entidades que tenham a ver com a preservação e desenvolvimento do nosso património edificado. Muitos dos edifícios que são construídos no nosso país ostentam, no que toca a processos de resvestimento exterior e interior, soluções que nada têm a ver com a cultura artística do país ou com as suas características climáticas, estendendo-se a questão ao interesse arquitectónico que deveria merecer o chão, as fachadas, as paredes, os vãos e os tectos. As imensas superfícies envidraçadas e os cinzentos ou castanhos metalizados, por exemplo, bem podem fornecer o toque de espavento pseudocosmopolita,  mas carecem da nobreza de materiais e técnicas mais conhecidas entre nós, obrigando em certos casos a vultuosos dispêndios energéticos em aquecimento, no inverno, e em ar condicionado, no verão. Onde contudo mais rotundamente falham é na ruptura com modelos de caracter estético que conferem ao nosso contexto urbano as suas características próprias e a sua marca de individualidade. Os hábitos dos agentes construtores e o isolado elitismo da cultura artística institucionalizada são realidades que entre si se ignoram, donde a fácil vitória do novo-riquismo invasor e do facilitismo consumista, eivados muitas vezes dum eriçado e lamentável mau gosto. Parece que o país enjeitou ou é incapaz de defender e criar os seus próprios modelos, desperdiçando riqueza na importação de outros que lhe são completamente alheios. É por isso mesmo que desta vez não me dirijo aos intelectuais, aos ilustrados professores e aos estudiosos, tão atentos às vertentes históricas consagradas e tão distanciados das realidades concretas do hoje, com suas determinações e exigências naturais.

A exposição de Eduardo Nery devia ser visitada pelos homens que vão ter na mão o lápis que faz os esquiços dos ante-projectos, os que têm a incumbência de elaborar os cadernos de encargos ou que empunham a caneta que assina a ordem de construir as obras. A cidade de Coimbra, onde não abundam os exemplos da utilização moderna de meios cerâmicos para revestimento ou decoração parietal, dá mostras crescentes de já ter adoptado a famosa receita das fachadas envidraçadas, das precárias superfícies de fosco metalizado e aquelas coisas espelhadas que brilham muito, estereótipos copiados não se sabe donde, reflectindo o gosto, ou falta dele, de quem tem pressa no acto de escolher e completamente ignora os imaginários que fizeram de Portugal um país com arte e cultura próprias.

Azulejos Eduardo Nery, Metro Campo Grande, Lisboa (Wikipedia)

Azulejos Eduardo Nery, Metro Campo Grande, Lisboa (Wikipedia)

Os painéis antigos também foram arte contemporânea

Algumas importantes e prestigiadas empresas que durante muitos anos produziram cerâmica com finalidades construtivas, decorativas ou simples utilidades de uso quotidiano saíram já de cenário. O seu trabalho ficará na memória dos que tiverem a coragem de querer saber quem somos, páginas de um presente “passado” ao qual se virou costas porque importar é mais “barato”, e aquilo que por cá se faz “já está mais do que visto”. O desfilar de exemplos oferecidos pelas intervenções urbanas de Eduardo Nery são duma imensa variedade  e riqueza, não deixando de evidenciar um desejável sentido renovador. São outras tantas vitórias do operador estético junto da sociedade produtiva na qual se insere, e da qual depende inteiramente no acto esclarecido da encomenda. A renovação e o reforço da capacidade produtiva dum país não caiem do céu aos trambolhões, e é preciso que todos os agentes construtores se lembrem disso. Os magníficos painéis de azulejos que foram produzidos em Portugal durante os séculos passados eram, nessa altura, arte contemporânea e, muitas vezes, fortemente inovadora. Muitos deles foram exportados e, onde quer que se encontrem, são ainda motivo de enobrecido prestígio e admiração. Quem quer que os encomendou fez o melhor dos negócios: serviu o presente e garantiu o futuro.

Se os homens deste início de terceiro milénio não sabem disso, como poderão ganhar alguma vez o direito e o mérito de ser lembrados como verdadeiros agentes de evolução e progresso? Como poderão alguma vez enunciar com honra, a par do proveito imediato, a qualidade e o valor do produto do seu trabalho?

Malick Sidibé no CAV, ou o glorioso espectáculo da humanidade

Malick Sidibé no CAV, ou o glorioso espectáculo da humanidade

Publicado Diário de Coimbra  21 de Maio de 2004

Pensar em África resulta sempre num imenso encadeado de associações de ideias em que se dão as mãos a mais deslumbrante paixão vital e os mais dolorosos sentimentos de prejuízo humanitário. Malick Sidibé, homem que nasceu em 1936 no Mali, estado vizinho da Guiné Bissau, fez parte das gerações que testemunharam “uma época de mudança resultante do fim dos impérios coloniais”. Acho que vale a pena mencionar que o Mali, antigo Sudão francês, apesar de ser o primeiro produtor de algodão da África subsariana, ocupa o 4º lugar entre os países mais pobres do mundo.

Olhando pois para as datas em que foram tiradas as fotografias expostas no CAV, causa-me um assombro de luto concluir que o esplendor de juventude e de vitalidade palpitante evidenciados pelos figurantes das mesmas pode entretanto ter-se extinguido, bastando saber que a esperança de vida não ultrapassa naquele país a barreira dos quarenta anos. Visitemos o CAV, não obstante, colhendo de cada imagem o deslumbramento de que formos capazes, aceitando como perene a natureza revelada e a juventude sem limites, porque convictas da sua própria autenticidade, ostentando todos os símbolos possíveis de exuberância afirmativa, quer de natureza tradicional e autóctone, quer de importação recente, sujeita aos ditames duma outra sociedade, cujas excelências podem nunca ter sido experimentadas pelos retratados. Malick Sidibé, de quem se diz “ter fotografado sempre por gosto e dever de ofício, jamais pensando numa carreira artística”, teve o talento de fazer passar pelas suas objectivas todas essas figuras saturadas de naturalidade, muito embora entregues por vezes, com a cumplicidade óbvia do próprio autor fotógrafo, a um jogo de atitudes artificiais comandadas pelo desejo de representação de subjectividades e de anseios pessoais.

À primeira vista fáceis de organizar tipologicamente, as fotografias de Sidibé revelam-se abundantes na variedade de propósitos de cada um dos protagonistas, ou grupos de protagonistas,  e na captação peculiar que dos mesmos foi efectuada pelo artista. Aparece a fotografia a três quartos e de meio corpo, evocativa da sumptuosa tradição da arte do retrato, as figurações conjuntas de colectivos em poses que sempre nos dizem muito pela energia e coesão respectivas, a galeria de figuras isoladas cuja personalidade é evidenciada pelos expedientes mais simples e a daqueles que se preocupam em ostentar certos símbolos aculturantes de efeito pretensamente convincente. Sabemos que o artista, já no virar do milénio, e depois de ter caído em desuso a fotografia de retrato tradicional, iniciou experiências com retratos de pessoas que figuram viradas de costas para a objectiva. Sem qualquer informação adicional, a opção não deixa de parecer misteriosamente simbólica de todo o encadeado de problemas em que mergulha o homem africano, ensimesmado na solidão do seu drama, afastado cada vez mais das fontes ancestrais donde parecia brotar uma pureza de vigor sem limites, e nem por isso mais próximo dos padrões afirmados pela envolvente e invasora civilização do homem branco.

Nos “Project Rooms” estão duas realizações, uma da autoria de Ricardo Valentim e outra evocativa da experiência em África dos familiares de Manuel Santos Maia. A primeira das duas faz convergir várias modalidades de intervenção artística: o registo mural, a pintura sobre tela e algo que me permitirei designar, sem compromisso de rigor, como uma “elaboração escultórica”.  O diálogo travado entre essas componentes é-nos apresentado num espaço esguio e alongado, o que acentua o efeito cenográfico do conjunto. Toda a instalação, realizada com materiais francamente modestos, opera uma fusão dinâmica com a iluminação do compartimento, particularmente expressiva para os elementos situados na parte mais elevada. Quanto ao projecto de M.S. Maia é de salientar o interesse histórico, etnográfico, cultural e até afectivo que evidencia, não sendo legível de forma imediata, antes solicitando uma cuidada observação. O espaço concentrado em que se encontra e o facto de a projecção de slides ser de fruição intimista (através de auscultadores), é inversamente proporcional ao âmbito do projecto, dotado de amplas áreas de significação que abrem para questionamentos da mais variada índole. “Espaços de projecto” deste tipo demonstram que as obras que figuram, por necessidades compreensíveis, em salas algo mais recuadas, não são menos merecedoras duma apreciação cuidada e atenta se fornecerem, como é o caso, e traduzindo do inglês, “alimentação para o pensamento” (food for thought!…)

Jemima Stehli e Pedro Cabrita Reis no CAV

Publicado Diário de Coimbra  13 de Fevereiro de 2004

Regresso a casa de mais uma visita ao CAV nesta tarde de ameno inverno que envolve na luz as mais desencontradas ilusões dum quotidiano ferido por vulgaridades atrozes e contingências que só o tempo resolverá, na sua incessante máquina de reproduzir instantes. Manuseio com prazer o material de apoio estético que trouxe comigo, resultante do esmero habitual da instituição. Resisto à tentação de mergulhar já na contemplação do livro branco que guarda o segredo de Jemima Stehli, a carne “cromogénica”, a epiderme feminina em “gelatina de prata” e o “velcro” em “plexiglas”.

Dos pátios com vocação lírica à insignificância dos críticos

Para já, o átrio exterior e as “Longer Journeys” de Pedro Cabrita Reis. Quando vi no jornal a primeira foto de divulgação da obra, mostrava-se a mesma num espaço interior, quase exíguo, de paredes de tijolo maciço e tecto de travejamento em madeira, soturnamente evocativo duma atmosfera fechada na humidade do silêncio. “Onde ela ficava bem era no pátio do CAV”, pensei de mim para comigo! E ela ali está, de facto, para benefício de quem visita, acrescentando valor ao sítio, “projectando-o”. As proporções humanizadas daquele quase recinto de teatrais enredos conferem à estrutura a sugestão interminável de pórticos sobrepostos, como se se tratasse de encenação operática ou labirinto para ritmados desencontros. Aquilo que o trabalho de Cabrita Reis foi de nave luminosa no espaço fechado, transforma-se ali numa sugestão de mergulho no firmamento, sobretudo se tivermos, como eu, a sorte de visitar aquele espaço à hora final da tarde em que mais hesitante e colorida é a luz que rodeia o mundo. Afirma PCR que “…A arte tem a ver com questões e nunca com declarações” e isso é algo que não vou aclarar, posto que o leitor melhor saberá fazê-lo que eu próprio já que, como bem afirma Barry Schwabsky no seu texto sobre Jemima Stehli “Só um louco tomaria um crítico de arte como uma autoridade em qualquer assunto…”

O interminável corpo da mulher

À parte a presença, pateticamente irrisória dos co-figurantes de algumas das obras propostas por JS (ou exactamente “por causa” dessa presença intencionada…) o corpo da artista erige-se em monumento ao acto fotográfico, não deixando contudo de nos embalar na evidência carnal e trágica que consigo transporta. É curioso que só às co-figurantes tenha sido conferida a gravidade problematizante da nudez . Como se aqui a nudez de pé fosse um privilégio de mais segura eternidade, e o riso equívoco de homens sentados o passaporte para uma relativa dignidade, redutora e burocrática. Como é monumental e decidida a figura perpendicular de JS, vestida ou nua, em paralelo, deixando para trás a superfície branca da tela de fundo! Como é literária e pictórica nas fotos coloridas, em movimento ou desconcerto posicional se em fundo vermelho! Grace e Karen são empurradas até nós num quase perturbável “exagero de proximidade” pelo esplendor tecnológico-fotográfico dos laboratórios londrinos. Nessas duas situações JS “apaga-se” numa surda presença oficinal, sendo apenas evocada  na semelhança longilínea das duas mulheres figuradas, ambas escorreitas e de bem marcada genitalidade, como ela própria. O “Strip” da artista frente às personalidades sentadas é impiedosamente ruidoso, sinalizando mais do que evidenciando as contingências do mostrar dúbio, convencional e estratégico, não se esgotando nisso uma variedade de outros aspectos do conjunto de fotografias que nos é mostrado.

Project rooms, o futuro e o juízo rigoroso

Nas minhas andanças de pintor sempre ouvi dizer aos meus críticos mais lúcidos e pertinentes que a obra é que conta, e só ela, para a ponderação do seu valor intrínseco. A explicação, o enredo, os preâmbulos que a respeito da obra possam ser aduzidos em nada contam, e nada pesam a favor ou desfavor da dita. A esse respeito muito caminho terá de andar a arte contemporânea para que transponha o portal das suas importantes intenções, se não corporizar de forma universalizante o teor dos seus conteúdos. O esmero estético das obras de Catarina Felgueiras e Nuno Ramalho, e o impacto problematizante de que se revestem alguns dos seus argumentos expressivos dependem demais do texto de Miguel Amado para que possamos “lê-los”. E isso entende-se na rapidez fugaz que certo público dispensa à visita dos espaços reservados a essas duas contribuições.